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7 de março de 2016

Post Nº 62 - E a Guiné sempre presente

Veríssimo Luz Ferreira
Fur. Mil. da CCAÇ 1422 - Pelundo














E A GUINÉ SEMPRE PRESENTE
Memórias avulsas

I
Se ao pisar o cais de desembarque (em finais de Abril de 1967) plagiei e gritei: "mulheres... cheguei" julgando eu, que a vidinha me iria correr melhor, mas depressa me dei conta que estava errado. Voltei para o anterior emprego de funcionário público... para vocalista do Conjunto Sôr-Ritmo... para a arbitragem de futebol... e eu sei lá o que fiz para me manter activo!
E assim se passou um ano, naquele ram-ram, com as sem jeito, mas costumadas conversas de café. No fundo, começava a sentir a saudade dos "meus" da 1422. E que falta me fazia, aquela adrenalina anterior... a alegria do "acordar" e de continuar vivo. E que falta me estava a fazer aquela camaradagem que houvera tido e que sabemos quão boa e saudável. Numa tentativa de alterar qualquer coisa que ainda nem sabia bem o quê, rumei à capital do Império, onde amenizei saudades conversando com a rapaziada amiga e com quem convivera a maior parte dos meus melhores 40 meses da minha vida.
Aqui, Restauradores em Lisboa, onde iniciei a profissão de bancário, acabei por me envolver de novo com tudo o que se ia passando, por lá longe. Primeiro, pelos contactos que começaram a acontecer com os ex-soldados Domingues, Soares e Lavado, com o ex-1º Cabo, Fernando Nascimento da minha Secção de Morteiros 60, com o ex-fur. Mil. Raul Durão, com os ex-alf. Mil's Macedo e José Simões mensalmente, com o Gualter, com o Formigo (estes dois também ex-furriéis) e mais ainda com alguns camaradas doutras companhias chegantes e com quem, ia acabando por me actualizar.
E em 1970 ou 71, fiz amizade, que se manteve por muitos e bons anos, com um Senhor Capitão, acabado de chegar do comando duma CART, operacional. Como não poderia deixar de ser, lá vieram as memórias e alguns relatos, embora a sua relutância pelo narrar coisas que lhe eram dolorosas, mesmo sendo Homem experimentado e esta tinha sido a sua 3ª comissão. Criámos um dia semanal para almoçarmos e algumas vezes com outros seus camaradas, Oficiais do Quadro e com quem eu aprofundava o mais saber. Em 1974, quando se deu a revolução, que tantos ódios (esperava-se o contrário e eu próprio, feito tonto, esperei mais amor, mas este foi-se e nunca mais voltou), que tantos ódios, repito, trouxe a este já pobre País, recebia-me ali no QG ali em S. Sebastião da Pedreira. Na porta d'armas identificavam-me, telefonavam... mandavam-me entrar até que, duas ou três vezes depois:  Ah... é o "Capitão" Veríssimo... pode entrar... vem para o cafézinho com o Nosso Major.
E foi assim que soube do desaparecimento físico, na estrada do Pelundo para Jolmete dos nossos homens (sete) através dum selvático assassínio; e foi assim que tomei conhecimento da operação a Conakry, que tanto me enche, ainda hoje, de orgulho; e foi assim, que soube da morte do Amílcar Cabral, cuja causa ainda hoje não esclarecida, embora a versão à época, seja bem diferente das que, de quando em vez por aí circulam.

II
MEMÓRIAS QUE PODERÃO ESTAR NO FUNDO DA ARCA
É um facto que contado tudo o que passámos poderão existir ainda uns resquícios, bem lá no fundo da memória e há que procurá-los. Eu próprio, continuo com dois meses muito nublados e sem saber o que aconteceu não só comigo mas também com a minha CCAÇ 1422. Porque nada tenho que fazer, para além de pescar, fazer o almoço e comê-lo, andar o qb a pé mas pouco que já me pesam as pernas, calçar embora com dificuldade, as meia elásticas, extraí-las à noite o que ainda é mais difícil, tenho lido bastante sobre aquela Guiné. Para os que lá estivemos antes de 1971 as situações descritas, estão cheias de coragem, carácter e valor sempre com um espírito de heroísmo e o sentir do dever cumprido, enquanto as posteriores e particularmente uma ou outra dos anos 1972 a 1974, afirmam um desespero constante, desânimo e o desejo de a abandonar depressa.
O sonho destes, cumpriu-se com a descolonização exemplar e não porque a guerra estivesse perdida, verdade se diga até, que alguns dizem nunca terem dado um tiro e até sentem orgulho por o não ter feito e outros dão loas aos guerrilheiros e até aos desertores, esquecendo que se estes criançolas, cobardemente o não tivessem feito, também a estadia forçada, que nalguns casos ultrapassou os 24 meses, poderia ter sido bem menor. Para estes, os que fugiram deixem que cite Teixeira de Pascoaes: "SABEIS, Ó COVARDES, O QUE É SER SOLDADO? É NÃO COMER QUANDO SE TEM FOME, NÃO BEBER QUANDO SE TEM SEDE E PODER COM O COMPANHEIRO FERIDO ÀS COSTAS, QUANDO NÃO SE PODE COM O SEU PRÓPRIO CORPO".
Outros atrevem-se a lascar postas de pescada, opinando como resolver tudo, AGORA, quando lá, se escondiam e até se orgulham de não terem actuado como deviam. Levam-me a crer que bem lá no fundo sentem remorsos, terão poucos amigos e até sentirão vergonha de si próprios. Sentem-se revolvidos por dentro? Aguentem... cumprissem com a vossa obrigação em vez de se esconderem nas baga-bagas e nos poilões. Nós, cada dia, o que desejávamos era sobreviver mais outro, na companhia dos nossos companheiros de infortúnio, que generosamente partilhavam do mesmo sentimento, da mesma luta, que bem sofrida foi. Defendia-mo-nos para não morrer... cumpríamos um dever obrigatório... quer fôssemos tropas milicianas ou do quadro e não nos acobardámos. Falo do que conheço e do que vi enquanto no mato.

III
Foi uma vez, num dia de Setembro de 1965. A CCAÇ 1422, é "convidada" a ir até Mansabá, para "aprender".  A minha Secção de Morteiros 60 é destacada para acompanhar um dos pelotões dos velhinhos ainda de farda amarela, numa operação marcada para essa noite e claro que desejosos de entrar em acção, contentíssimos ficámos por finalmente irmos saber como era aquela coisa da guerra e ganhá-la pois então. Chovia torrencialmente, a selva escura.... a progressão demorada e cheia de silêncios, mas lá chegámos ao objectivo, que rodeámos sem termos sido detectados. Foi-me determinado que incendiasse as moranças frente do local onde estávamos emboscados, logo após a ordem que receberia depois da fogaracha que iria acontecer e aconteceu e também que disparasse ao ver algum elemento armado o que também fiz. Entretido, dei a determinada altura, que estava só, com os meus oito homens, porque os outros que viera coadjuvar, já por ali não estavam. Sem guia, sem saber por onde ir, mas temente a morteiradas que começavam a cair, enviadas pelo IN, decidi organizar a defesa possível, enquanto esperava que alguém desse pela nossa falta e nos resgatasse. Meia hora depois tal aconteceu, vieram o Senhor Alferes, Cmdt do grupo, um guia e o "Manel de Mora", com quem convivo uma vez por ano e também a recriminação suavizada por ser a minha 1ª vez: É pá, f...-se, podias ter sido comido vivo, aquilo era para destruir e abandonar em passo de corrida.
FOI OUTRA VEZ EM SETEMBRO, MAS DE 1974
Depois... veio o não reconhecimento pelo facto de ter cumprido o serviço militar obrigatório e ter cumprido o meu dever: um grupo de pobres gentes, manifestavam-se (falo da época das ocupações, lembram-se?) numa estrada em frente a um Hospital e a quem buzinei para passar no meu bólide de 40 contos novo em folha, mas essas gentes resolveram atirar-me pedrinhas o que me desagradou sobretudo. Claro que saí, e perguntei do porquê, pois que eu nem pertencia à administração, nem enfermeiro era. A resposta veio pela voz de duas mulheres presentes ali na turba: Foste combatente na Guiné, colaboraste com os fascistas, és fascista. Outra argumentou: E ainda por cima, tens um carro novo! Pois bem, segundo a maldade que imperava então, só os desertores eram considerados e recebidos com pompa. Foi o tempo da gritaria do "acabemos com os ricos" ao contrário do que hoje acontece em que estão, sem gritar, a acabar com os pobres. No fundo nada mudou, nem o tratamento que continua a ser dado aos Combatentes, que lá longe no "paraíso" onde estivemos, muito do pior presenciámos.


Veríssimo Ferreira
2016


Publicado por
Manuel Resende (Ferreira)