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7 de março de 2016

Post Nº 62 - E a Guiné sempre presente

Veríssimo Luz Ferreira
Fur. Mil. da CCAÇ 1422 - Pelundo














E A GUINÉ SEMPRE PRESENTE
Memórias avulsas

I
Se ao pisar o cais de desembarque (em finais de Abril de 1967) plagiei e gritei: "mulheres... cheguei" julgando eu, que a vidinha me iria correr melhor, mas depressa me dei conta que estava errado. Voltei para o anterior emprego de funcionário público... para vocalista do Conjunto Sôr-Ritmo... para a arbitragem de futebol... e eu sei lá o que fiz para me manter activo!
E assim se passou um ano, naquele ram-ram, com as sem jeito, mas costumadas conversas de café. No fundo, começava a sentir a saudade dos "meus" da 1422. E que falta me fazia, aquela adrenalina anterior... a alegria do "acordar" e de continuar vivo. E que falta me estava a fazer aquela camaradagem que houvera tido e que sabemos quão boa e saudável. Numa tentativa de alterar qualquer coisa que ainda nem sabia bem o quê, rumei à capital do Império, onde amenizei saudades conversando com a rapaziada amiga e com quem convivera a maior parte dos meus melhores 40 meses da minha vida.
Aqui, Restauradores em Lisboa, onde iniciei a profissão de bancário, acabei por me envolver de novo com tudo o que se ia passando, por lá longe. Primeiro, pelos contactos que começaram a acontecer com os ex-soldados Domingues, Soares e Lavado, com o ex-1º Cabo, Fernando Nascimento da minha Secção de Morteiros 60, com o ex-fur. Mil. Raul Durão, com os ex-alf. Mil's Macedo e José Simões mensalmente, com o Gualter, com o Formigo (estes dois também ex-furriéis) e mais ainda com alguns camaradas doutras companhias chegantes e com quem, ia acabando por me actualizar.
E em 1970 ou 71, fiz amizade, que se manteve por muitos e bons anos, com um Senhor Capitão, acabado de chegar do comando duma CART, operacional. Como não poderia deixar de ser, lá vieram as memórias e alguns relatos, embora a sua relutância pelo narrar coisas que lhe eram dolorosas, mesmo sendo Homem experimentado e esta tinha sido a sua 3ª comissão. Criámos um dia semanal para almoçarmos e algumas vezes com outros seus camaradas, Oficiais do Quadro e com quem eu aprofundava o mais saber. Em 1974, quando se deu a revolução, que tantos ódios (esperava-se o contrário e eu próprio, feito tonto, esperei mais amor, mas este foi-se e nunca mais voltou), que tantos ódios, repito, trouxe a este já pobre País, recebia-me ali no QG ali em S. Sebastião da Pedreira. Na porta d'armas identificavam-me, telefonavam... mandavam-me entrar até que, duas ou três vezes depois:  Ah... é o "Capitão" Veríssimo... pode entrar... vem para o cafézinho com o Nosso Major.
E foi assim que soube do desaparecimento físico, na estrada do Pelundo para Jolmete dos nossos homens (sete) através dum selvático assassínio; e foi assim que tomei conhecimento da operação a Conakry, que tanto me enche, ainda hoje, de orgulho; e foi assim, que soube da morte do Amílcar Cabral, cuja causa ainda hoje não esclarecida, embora a versão à época, seja bem diferente das que, de quando em vez por aí circulam.

II
MEMÓRIAS QUE PODERÃO ESTAR NO FUNDO DA ARCA
É um facto que contado tudo o que passámos poderão existir ainda uns resquícios, bem lá no fundo da memória e há que procurá-los. Eu próprio, continuo com dois meses muito nublados e sem saber o que aconteceu não só comigo mas também com a minha CCAÇ 1422. Porque nada tenho que fazer, para além de pescar, fazer o almoço e comê-lo, andar o qb a pé mas pouco que já me pesam as pernas, calçar embora com dificuldade, as meia elásticas, extraí-las à noite o que ainda é mais difícil, tenho lido bastante sobre aquela Guiné. Para os que lá estivemos antes de 1971 as situações descritas, estão cheias de coragem, carácter e valor sempre com um espírito de heroísmo e o sentir do dever cumprido, enquanto as posteriores e particularmente uma ou outra dos anos 1972 a 1974, afirmam um desespero constante, desânimo e o desejo de a abandonar depressa.
O sonho destes, cumpriu-se com a descolonização exemplar e não porque a guerra estivesse perdida, verdade se diga até, que alguns dizem nunca terem dado um tiro e até sentem orgulho por o não ter feito e outros dão loas aos guerrilheiros e até aos desertores, esquecendo que se estes criançolas, cobardemente o não tivessem feito, também a estadia forçada, que nalguns casos ultrapassou os 24 meses, poderia ter sido bem menor. Para estes, os que fugiram deixem que cite Teixeira de Pascoaes: "SABEIS, Ó COVARDES, O QUE É SER SOLDADO? É NÃO COMER QUANDO SE TEM FOME, NÃO BEBER QUANDO SE TEM SEDE E PODER COM O COMPANHEIRO FERIDO ÀS COSTAS, QUANDO NÃO SE PODE COM O SEU PRÓPRIO CORPO".
Outros atrevem-se a lascar postas de pescada, opinando como resolver tudo, AGORA, quando lá, se escondiam e até se orgulham de não terem actuado como deviam. Levam-me a crer que bem lá no fundo sentem remorsos, terão poucos amigos e até sentirão vergonha de si próprios. Sentem-se revolvidos por dentro? Aguentem... cumprissem com a vossa obrigação em vez de se esconderem nas baga-bagas e nos poilões. Nós, cada dia, o que desejávamos era sobreviver mais outro, na companhia dos nossos companheiros de infortúnio, que generosamente partilhavam do mesmo sentimento, da mesma luta, que bem sofrida foi. Defendia-mo-nos para não morrer... cumpríamos um dever obrigatório... quer fôssemos tropas milicianas ou do quadro e não nos acobardámos. Falo do que conheço e do que vi enquanto no mato.

III
Foi uma vez, num dia de Setembro de 1965. A CCAÇ 1422, é "convidada" a ir até Mansabá, para "aprender".  A minha Secção de Morteiros 60 é destacada para acompanhar um dos pelotões dos velhinhos ainda de farda amarela, numa operação marcada para essa noite e claro que desejosos de entrar em acção, contentíssimos ficámos por finalmente irmos saber como era aquela coisa da guerra e ganhá-la pois então. Chovia torrencialmente, a selva escura.... a progressão demorada e cheia de silêncios, mas lá chegámos ao objectivo, que rodeámos sem termos sido detectados. Foi-me determinado que incendiasse as moranças frente do local onde estávamos emboscados, logo após a ordem que receberia depois da fogaracha que iria acontecer e aconteceu e também que disparasse ao ver algum elemento armado o que também fiz. Entretido, dei a determinada altura, que estava só, com os meus oito homens, porque os outros que viera coadjuvar, já por ali não estavam. Sem guia, sem saber por onde ir, mas temente a morteiradas que começavam a cair, enviadas pelo IN, decidi organizar a defesa possível, enquanto esperava que alguém desse pela nossa falta e nos resgatasse. Meia hora depois tal aconteceu, vieram o Senhor Alferes, Cmdt do grupo, um guia e o "Manel de Mora", com quem convivo uma vez por ano e também a recriminação suavizada por ser a minha 1ª vez: É pá, f...-se, podias ter sido comido vivo, aquilo era para destruir e abandonar em passo de corrida.
FOI OUTRA VEZ EM SETEMBRO, MAS DE 1974
Depois... veio o não reconhecimento pelo facto de ter cumprido o serviço militar obrigatório e ter cumprido o meu dever: um grupo de pobres gentes, manifestavam-se (falo da época das ocupações, lembram-se?) numa estrada em frente a um Hospital e a quem buzinei para passar no meu bólide de 40 contos novo em folha, mas essas gentes resolveram atirar-me pedrinhas o que me desagradou sobretudo. Claro que saí, e perguntei do porquê, pois que eu nem pertencia à administração, nem enfermeiro era. A resposta veio pela voz de duas mulheres presentes ali na turba: Foste combatente na Guiné, colaboraste com os fascistas, és fascista. Outra argumentou: E ainda por cima, tens um carro novo! Pois bem, segundo a maldade que imperava então, só os desertores eram considerados e recebidos com pompa. Foi o tempo da gritaria do "acabemos com os ricos" ao contrário do que hoje acontece em que estão, sem gritar, a acabar com os pobres. No fundo nada mudou, nem o tratamento que continua a ser dado aos Combatentes, que lá longe no "paraíso" onde estivemos, muito do pior presenciámos.


Veríssimo Ferreira
2016


Publicado por
Manuel Resende (Ferreira)



16 de janeiro de 2016

Post Nº 60 - Textos de Veríssimo (11)

Veríssimo Luz Ferreira
Fur. Mil. da CCAÇ 1422 - Pelundo














OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

(continuação)
E VAI DAÍ:
A 12 de Junho de 1966 aconteceu o impensável, embora a morte nos tivesse já levado em 17 de Maio último um camarada FURRIEL MILICIANO e também com a traição duma mina. Digo impensável, por ter sido ali naquele sítio. A vítima desta vez foi o nosso Capitão Dinis Corte-Real, Comandante da Companhia. E eu estava lá... e eu vi como foi. O seu jeep e o meu unimog cruzar-se-iam dentro de segundos. Tudo fora preparado, disso continuo convencido, para ser detonada à distância e só mesmo quando da sua passagem, o que até nem era habitual. Deslocava-se portanto, nesse dia e àquela hora, a título excepcional e apenas meia-dúzia, disso sabiam.

Já passáramos por ali mais de vinte vezes, a estrada fora picada aquando da primeira passagem e depois, de cinco em cinco minutos, voltávamos a fazer o mesmo trajecto com ida e volta, ora levando a água trazida de Farim, ora regressando para nova recolha e a área circundante tinha vasta visibilidade e estava capinada e para além disso tínhamos patrulhas a pé e em constante movimento de vai-vem, vigiando os três Kms que separavam o aquartelamento do rio.

Não faltou ou faltava portanto a segurança e para mim tratou-se dum atentado traiçoeiro, bem organizado e conseguido pelo inimigo. Perdi ali uma grande amizade e mais um dos INESQUECÍVEIS. Chegado ao aquartelamento foi-me dada a ordem para ir emboscar num local onde só deveriam ir tropas, com um efectivo mínimo humano, equivalente ao d'uma Companhia (O Sr. Cmdt. do Batalhão o dissera) e não apenas com nove homens tantos quantos constituíamos a Secção de Morteiros. Revoltei-me inicialmente, dados os riscos e o possível desastre, mas acatei e cumpri, como não podia deixar de ser, não sem que antes recordasse a determinação superior de que "ali não menos de150 homens a emboscar".

A progressão enviesada através da mata fi-la, após preparada com redobrados cuidados. Chegados ao local, dispus as tropas em presença, ao longo de mais ou menos 50 metros e ladeando o objectivo, que ficava perpendicular à estrada. Talvez uma hora depois, o "vigia" mais afastado, veio rastejando até mim e segreda-me: "É pá, vejo umas "sombras" e não são tão poucos como isso". Desloquei-me lá e apesar da copiosa chuva, do nevoeiro e da mata cerrada, confirmei que na verdade, haviam movimentações ali a 100 metros e que apesar da forma cuidadosa, iriam cair na boca do lobo. Alterei de imediato o dispositivo antes montado, de forma a constituir nova zona de morte para quem lá vinha (o inimigo decerto, ou muito provavelmente).

Pelas experiências antes vividas, foi minha convicção que após aí entrados, não mais de lá sairiam para contar como fora. Passados foram minutos terríveis, os dedos já tremiam nos gatilhos, e se não liquidámos o 2º Pelotão da nossa CCAÇ 1422, foi porque ouvi do lado de lá: Ó Veríssimo...NÃO DISPARES...SOU EU O MACEDO. Acontecera que, no aquartelamento e após acalorada discussão (ao que soube mais tarde), aquele Senhor ALFERES MILICIANO, tomara a iniciativa de ir colaborar e ajudar também no nosso regresso. Crente não fui ou sou, mas naquele dia e àquela hora, o destino estava lá e passou por ali, materializado naquela voz: "Ó VERÍSSIMO NÃO DISPARES".

DO INFERNO PARA O CÉU
Estando aqui a VIVER Guiné lá se foram alguns dos fantasmas que me
incomodavam desde 1967. E tenho-o feito a brincar... a brincar com os momentos angustiosos vividos, particularmente no que se refere aos doze meses no mato. Já os últimos oito meses da comissão foram passados em Bissau. Tiro... e queda... e nem ainda hoje acredito... mas na verdade tive de abandonar a minha CCAÇ 1422. Inicialmente, por motivos odiosos e alheios à minha vontade, "voluntariei-me" para fazer parte da 3ª Companhia de Comandos do Quartel General, só que essa integração após a aprovação dos exames a que me sujeitaram, não foi possível dada a chegada duma verdadeira, treinada e formada na Metrópole.

Enquanto aguardava o regresso ao ponto de partida, colocaram-me, para ajudar administrativamente, na Secção de Funerais e Registo de Sepulturas/1ª Repartição/QG e que acabei por vir a chefiar. São-me disponibilizadas, residência militar junto à messe em Santa Luzia e também uma viatura descaracterizada, um mini moke. Sem obrigações nem horários, competia-me unicamente, estar sempre disponível para enfrentar os funestos acontecimentos, inerentes à função que agora exercia.

Ao saber destes, tinham de ser imediatamente tomadas as providências para que tais cruéis notícias fossem transmitidas para Lisboa, a fim de que, do HORROR, fosse dado primeiro, conhecimento aos familiares. Impunha-se-me, que nalguns casos, fizesse o reconhecimento presencial, na morgue do Hospital Militar, se antes as Companhias onde o desenlace se dera, mo não comunicassem. Vinham a seguir, as cerimónias religiosas e toda a elaboração da documentação para a célere trasladação. Como vêem, saíra do Inferno e estava agora no purgatório nada fácil e com tantos sentimentos contraditórios, a quererem destruir-me.

O CÉU, Bissau pois. A cidade tinha de tudo... fui sócio da UDIB; ia ao cinema... ao aeroporto... ao cais ver quem chega, nem sonhando a que martírio... contrastando com a alegria dos que partiam... nos : Uige... Niassa... Manuel Alfredo... Rita Maria... Ana Mafalda. A minha presença era requerida no futebol... nos locais com boa comida... na piscina de Nhacra... nos camarões em Quinhamel... e tudo no maior sossego que por ali não se vislumbrava ainda a guerra ... nem haviam bolanhas para atravessar... nem percutores do morteiro para substituir ou sequer G3 para olear. A relação com os cidadãos, de amizade mais tarde, era excelente e facilmente nos acolhiam nos seus seios.

Existiam grandes armazéns que tudo vendiam desde agulhas a automóveis e nos mercados nada faltava. As noites eram famosas e já apareciam simulacros de boites. Em momentos vagos, visitei a Sé... o Liceu... o Palácio do Governador
(Arnaldo Schutlz então)... o Pilão... a fábrica da gasosas... o Café Portugal... o Pintosinho... a Ultramarina... a casa Gouveia... O BNU... a Rádio... as tascas que serviam ostras ao natural... enfim !!!
Turismo de guerra foi o que fiz por quase todo o Norte da Guiné, particularmente na zona do Oio e pelas matas que rodeavam Morés. Depois passei os últimos oito meses em Bissau e aí tudo foi do bom e do melhor. Até tive o luxo de ter comigo durante 2 meses a minha filha e a minha mulher.
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A certa altura mandaram-me regressar à Metrópole, mas poderiam ter tido a delicadeza de perguntar:
- Queres ir ou ficar?
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Um tal de Uíge convida-me então a vir com ele. Lisboa engalanou-se para me receber e, debaixo da ponte e com o cais de desembarque à vista, juntei-me ao enorme coro que ali já deixara a sua voz e também gritei: VIVA A PELUDA.
E hoje se por lá passarem, porque o eco ainda se houve desde a foz à nascente do Tejo, têm que saber que tais palavras foram entoadas por centenas de milhares de COMBATENTES, e que o fizeram em grande momento de felicidade.
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E SE ESCUTAREM COM ATENÇÃO, OUVIR-ME-HÃO DECERTO.

(FIM)


Veríssimo Ferreira (2015)



Publicado por
Manuel Resende (Ferreira)



11 de janeiro de 2016

Post Nº 59 - Textos de Veríssimo (10)

Veríssimo Luz Ferreira
Fur. Mil. da CCAÇ 1422 - Pelundo













OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

(continuação)
E VAI DAÍ:
Entrementes em meados de Abril, é-me concedida uma licença de 5 dias a fim de "tirar a carta de condução" em Bissau. Lá cheguei... eram duas da tarde, almocei na Pensão onde me hospedei, ali perto do Liceu e fui dormir a sesta. Jantei depois um bruto bife com molhança picante e bem acompanhado por um tinto... mais sobremesa, whisky e café. De seguida, fui dar um passeio pela cidade. Ali no largo onde se situava o Palácio do Governador e numa esquina da rua que vai para o Hospital e segue para Brá e por aí fora, parei no Café Portugal para novo mata-bicho e dou de caras com um amigo do meu "povo", piloto das FAP. Abraços para cá e para lá, conversámos sobre isto e mais aquilo, e dispôs-se a levar notícias e saudades minhas, à família, o que agradeci.

Só que às tantas diz: Ó pá porque não vens connosco que t'arranjo um lugar no Skymaster? Partimos depois de amanhã. Ai qu'este gajo está tonto.... pensei, mas a ideia começou a toldar-me o espírito... a fervilhar... e a fervilhar cada vez mais e mais... e disse: Porque não? que terei de fazer? como resolver isto? será que? OU SERÁ QUE? Por sorte e por pesquisas encetadas por nós dois, soubemos que o meu Comandante de Batalhão, chegara de Catió e estava por acaso no QG, que nem longe dali era. E fomos lá e consegui contactá-lo e prometeu assinar tudo a autorizar se "o teu Comandante de Companhia nada tiver contra". Contacta-o... ele que me ligue e amanhã à tarde, passa por cá. Através dos rádios militares foi conseguida a ligação e na tarde seguinte, lá estava eu de novo, cheio de continências e esperanças... e lá recebi os papéis... passaportes... vacinas e mais ainda, com os votos de Boa Viagem e "goza rapaz" mas volta daqui a 30 dias e fica sabendo: "estás bem visto pelo teu Capitão".

INCRÍVEL, mas verdadeiro e no outro dia, ao nascer daquele bonito sol, levantámos voo e em boa verdade só me convenci que não sonhava quando parámos nas Canárias, devido a avaria num dos motores do avião o que e como soube só 30 anos depois, era hábito acontecer. Foram 4 dias magníficos que ali passei, comprei uma Canon, um gravador e um rádio portátil da Sony e hospedado estive como convidado, nas instalações militares espanholas do aeroporto, até que e reparada (?) a coisa, nos fizemos rumo a Portugal e era já noite quando chegámos, tendo apenas como único transporte para sair dali, rumo à santa terrinha um tal de comboio correio que demorou 8 horas a chegar em vez das duas e meia habituais.

Alô K3: Apresenta-se o Senhor Fur. Mil. que "desertou" daqui há 35 dias, para ir a Bissau tirar as cartas de condução de veículos ligeiros, pesados e motos e que acabou por andar a engonhar no bem-bom da Metrópole, devido a causas e artes mágicas. Trago, para paparmos juntos, uns chóriços lá do porco dum meu parente, bem como uns paínhos do lombo do mesmo animal. Nisto ouve-se uma voz vinda lá do fundo: "Calha bem qu'o lume está aceso". Era dum dos homens da minha Secção, experimentado nos temperos com que besuntava as distraídas cabras do mato que ultimamente e por vezes, se deixavam apanhar por ali e que melhor ainda, untava os pombos verdes que derrubava com a pressão d'ar.

Outros foram chegando para me dar as boas-vindas, atraídos que foram, pelo agradável cheirinho do grelhado e assim se consumiram os vinte quilos do bom enchido de fumeiro e dois garrafões de catorze litros do tinto ali estacionado para consumo interno, para além das bastas cervejolas das grandes. Pela matina, ergui-me ainda lusco-fusco e fui prestar vassalagem ao aquartelamento e mirar as novidades: A cozinha estava já com as paredes caiadas e na parte virada para o exterior, onde havia sido construído um muro, um metro para fora e cheio com terra, a fim de resistir às investidas do espingardum inimigo. O tecto perfeito.

Também tínhamos agora, um gerador para fornecer luz a quatro potentes holofotes, colocados um a cada canto do recinto, luz essa que só seria ligada quando das visitas habituais nocturnas. A ideia era proporcionar aos manganões, uma melhor visão aquando da fuga rápida, que costumavam iniciar logo que os cumprimentávamos de acordo com as mais elementares regras da boa educação. Dentro ainda daquele espírito bondoso, que nos animava queríamos que não tropeçassem no escuro e, que se não aleijassem ou partissem alguma perna, coitados. Além, junto à via rápida para Mansabá, perto da porta d'armas, fora criado um mini-zoo e construído um tanque onde boiava um metro de crocodilo, que fazia a alegria da rapaziada e também eu colaborei com alguns restos do leite condensado matinal, que comia às colheres, em vez do misturar com água, coisa que ainda hoje pouco   consumo porque líquido sensaborão e com cheiro a lixívia. Uso apenas para lavagens.

Ao lado, fizera-se uma horta onde despontavam alfaces, couves e cenouras. Os resultados finais foram negativos, porque e a meu ver, especialista que fui em nabos e na produção de tomates, o terreno era ensopado pelas águas do Cacheu e estas traziam resquícios de sal marinho. À volta do hotel e para lá das redes do arame farpado, a área capinada fora aumentada e as vistas estavam soberbas. Pena que os passeios a rodear as suites, continuavam feitos lamaçal e mais ainda agora, graças à bendita chuva de quentes águas, própria da época iniciada e que durará até lá para Oitembro, mas que me permitirá tomar grandes banhos ao ar livre, comungando com a natureza e utilizando o Lifebuoy, que ainda uso, salvo um dia antes de ir ao barbeiro, pois que ele costumava dizer-me: "a sua cabeça cheira a cão". E pronto, despeço-me até "ao meu regresso".


K3, Maio de 1966. Aquela manhã nascera chuvosa, tal e qual estivera a noite que passei deitado na mata emboscando. Chegara há pouco ao bedroom, dormira uma hora, mas ergui-me do leito e os pés ficaram logo em água, que por acaso ainda não molhava o colchão de suaves penas. Peguei nos chinelos de Macau, usados habitualmente nos pés... pois então. Trouxe-os na mão porém e até à saída da suite, vim devagar e lentamente para não acordar a minha Secção de Morteiros 60. Cinco metros e trinta depois e já na rua propriamente dita, escorreguei e lá ficou a gabardine com que dormira, cheia de avermelhada lama.

Ia para bater à porta do bar, após ter descido dez degraus, só que estava já aberta e afinal eu não era o único madrugador. Lá fora notava-se a rapaziada acordando, qu'o novo dia surgia. Hoje estava eu de serviço à água, que é como quem diz, lá iria com mais oito ou nove voluntários escolhidos, até Farim, de Unimog repleto de bidons, garrafões e tudo o que mais houvesse, para os encher na fonte. Até nem era uma operação difícil, pois que enquanto isso, aproveitávamos para nos revezarmos e para ali mesmo ao lado petiscarmos. Cada qual levava alguns dos poucos morfes sobrantes ainda da remessa que familiares enviaram e para além disso, o taberneiro libanês também vendia alguns razoáveis produtos para as, comezaina e bebezaina. A tarefa da recolha aquifera terminava três viagens após o início, o que resultava mais ou menos até aí pró meio-dia, hora mesmo boa para deglutir o almoço. A distancia do aquartelamento até à jangada que nos passava para a banda di lá, era precisamente de três Km's (daí o nome K3)... a estrada com mais do que menos buracos... tudo capinado à volta... vistas largas.

A rapaziada ia ao rio banhar-se e pescar. Banhar-se mas só depois de atirar uma ou duas granadas para afugentar os enormes crocodilos que por ali andavam e que eram o sustento de especializados caçadores. Vendiam a carne e o bife tenrinho. Negociavam também a pele do monstro, depois de seca. O Higino Arrozeiro, queria ir para França, logo após o cumprimento do dever na Guiné a fim de poder melhor ajudar a sua mãe viúva, com quem vivia e daí o ter-me pedido uma ajudita. Vamos nessa pá... tenho nisso muito gosto, vou mandar vir um livro de leitura e a gramática mas entretanto podemos já a ver os primórdios. Claro que estranhou (mas ia tomando notas) que o "au" se lesse "ô"... ; o "du"= "diú" ... ; o "en= â ... e o "ou"=" ú ". Chegaram entretanto da Metrópole os livros pedidos.

Por e devido ao facto de me ter sido dada a hipótese de ter ido passar umas férias, interrompemos mas deixei-lhe trabalho de casa para fazer. Sei que os fez que bem os vi, quando regressei, mas ele já cá não estava. Partira depois de a viatura em que seguia, ter pisado uma mina que o levou sabe-se lá para onde. Em Bissau voltei a encontrar o meu amigo, que jazia na capela do cemitério, a aguardar trasladação. Eu mesmo o meti no Niassa embrulhado que estava o caixão, em quatro tábuas, não sem que o tenha admoestado por ir daquela forma. Antes ainda ofereci-lhe com dedicatória... a gramática... o livro de leitura e os trabalhos de casa que ele fizera, e que não corrigi. E ali, no cais do Pigiguitti, cornetim amigo tocou o toque de Silêncio. E eu, em sentido, acompanhei-o assobiando... tremendo... até que o barco se diluiu no horizonte.
(Continua)

Veríssimo Ferreira (2015)



Publicado por
Manuel Resende (Ferreira)