Veríssimo Luz Ferreira
Fur. Mil. da CCAÇ 1422 -
Pelundo
OS MELHORES 40 MESES DA MINHA
VIDA
(continuação)
E VAI DAÍ:
Entrementes em meados de
Abril, é-me concedida uma licença de 5 dias a fim de "tirar a carta de condução" em
Bissau. Lá cheguei... eram duas da tarde,
almocei na Pensão onde me hospedei, ali perto do Liceu e fui dormir a sesta.
Jantei depois um bruto bife com molhança picante e bem acompanhado por um
tinto... mais sobremesa, whisky e café. De seguida, fui dar um passeio pela
cidade. Ali no largo onde se situava o Palácio do Governador e numa esquina da
rua que vai para o Hospital e segue para Brá e por aí fora, parei no Café
Portugal para novo mata-bicho e dou de caras com um amigo do meu
"povo", piloto das FAP. Abraços para cá e para lá, conversámos sobre
isto e mais aquilo, e dispôs-se a levar notícias e saudades minhas, à família,
o que agradeci.
Só que às tantas diz: Ó pá porque não vens connosco que t'arranjo um lugar no Skymaster? Partimos depois de amanhã. Ai qu'este gajo está tonto.... pensei, mas a ideia começou a toldar-me o espírito... a fervilhar... e a fervilhar cada vez mais e mais... e disse: Porque não? que terei de fazer? como resolver isto? será que? OU SERÁ QUE? Por sorte e por pesquisas encetadas por nós dois, soubemos que o meu Comandante de Batalhão, chegara de Catió e estava por acaso no QG, que nem longe dali era. E fomos lá e consegui contactá-lo e prometeu assinar tudo a autorizar se "o teu Comandante de Companhia nada tiver contra". Contacta-o... ele que me ligue e amanhã à tarde, passa por cá. Através dos rádios militares foi conseguida a ligação e na tarde seguinte, lá estava eu de novo, cheio de continências e esperanças... e lá recebi os papéis... passaportes... vacinas e mais ainda, com os votos de Boa Viagem e "goza rapaz" mas volta daqui a 30 dias e fica sabendo: "estás bem visto pelo teu Capitão".
INCRÍVEL, mas verdadeiro e no outro dia, ao nascer daquele bonito sol, levantámos voo e em boa verdade só me convenci que não sonhava quando parámos nas Canárias, devido a avaria num dos motores do avião o que e como soube só 30 anos depois, era hábito acontecer. Foram 4 dias magníficos que ali passei, comprei uma Canon, um gravador e um rádio portátil da Sony e hospedado estive como convidado, nas instalações militares espanholas do aeroporto, até que e reparada (?) a coisa, nos fizemos rumo a Portugal e era já noite quando chegámos, tendo apenas como único transporte para sair dali, rumo à santa terrinha um tal de comboio correio que demorou 8 horas a chegar em vez das duas e meia habituais.
Alô
K3: Apresenta-se o Senhor Fur. Mil. que "desertou" daqui há 35 dias,
para ir a Bissau tirar as cartas de condução de veículos ligeiros, pesados e
motos e que acabou por andar a engonhar no bem-bom da Metrópole, devido a
causas e artes mágicas. Trago, para paparmos juntos, uns chóriços lá do porco
dum meu parente, bem como uns paínhos do lombo do mesmo animal. Nisto ouve-se
uma voz vinda lá do fundo: "Calha
bem qu'o lume está aceso". Era dum dos homens da minha Secção,
experimentado nos temperos com que besuntava as distraídas cabras do mato que
ultimamente e por vezes, se deixavam apanhar por ali e que melhor ainda, untava
os pombos verdes que derrubava com a pressão d'ar.
Outros foram chegando para me dar as boas-vindas, atraídos que foram, pelo agradável
cheirinho do grelhado e assim se consumiram os vinte quilos do bom enchido de
fumeiro e dois garrafões de catorze litros do tinto ali estacionado para
consumo interno, para além das bastas cervejolas das grandes. Pela matina,
ergui-me ainda lusco-fusco e fui prestar vassalagem ao aquartelamento e mirar
as novidades: A cozinha estava já com as paredes caiadas e na parte virada para
o exterior, onde havia sido construído um muro, um metro para fora e cheio com
terra, a fim de resistir às investidas do espingardum inimigo. O tecto
perfeito.
Também tínhamos agora, um gerador para fornecer luz a quatro potentes
holofotes, colocados um a cada canto do recinto, luz essa que só seria ligada
quando das visitas habituais nocturnas. A ideia era proporcionar aos manganões,
uma melhor visão aquando da fuga rápida, que costumavam iniciar logo que os
cumprimentávamos de acordo com as mais elementares regras da boa educação.
Dentro ainda daquele espírito bondoso, que nos animava queríamos que não
tropeçassem no escuro e, que se não aleijassem ou partissem alguma perna,
coitados. Além, junto à via rápida para Mansabá, perto da porta d'armas, fora criado um
mini-zoo e construído um tanque onde boiava um metro de crocodilo, que fazia a
alegria da rapaziada e também eu colaborei com alguns restos do leite
condensado matinal, que comia às colheres, em vez do misturar com água, coisa
que ainda hoje pouco consumo porque
líquido sensaborão e com cheiro a lixívia. Uso apenas para lavagens.
Ao lado, fizera-se uma horta onde despontavam alfaces, couves e cenouras. Os resultados finais foram negativos, porque e a meu ver, especialista que fui em nabos e na produção de tomates, o terreno era ensopado pelas águas do Cacheu e estas traziam resquícios de sal marinho. À volta do hotel e para lá das redes do arame farpado, a área capinada fora aumentada e as vistas estavam soberbas. Pena que os passeios a rodear as suites, continuavam feitos lamaçal e mais ainda agora, graças à bendita chuva de quentes águas, própria da época iniciada e que durará até lá para Oitembro, mas que me permitirá tomar grandes banhos ao ar livre, comungando com a natureza e utilizando o Lifebuoy, que ainda uso, salvo um dia antes de ir ao barbeiro, pois que ele costumava dizer-me: "a sua cabeça cheira a cão". E pronto, despeço-me até "ao meu regresso".
K3, Maio de 1966. Aquela manhã
nascera chuvosa, tal e qual estivera a noite que passei deitado na mata
emboscando. Chegara há pouco ao bedroom,
dormira uma hora, mas ergui-me do leito e os pés ficaram logo em água, que por
acaso ainda não molhava o colchão de suaves penas. Peguei nos chinelos de Macau, usados habitualmente nos
pés... pois então. Trouxe-os na mão porém e até à saída da suite, vim devagar e
lentamente para não acordar a minha Secção de Morteiros 60. Cinco metros e trinta depois e já na rua propriamente
dita, escorreguei e lá ficou a gabardine com que dormira, cheia de avermelhada
lama.
Ia para bater à porta do bar, após ter descido
dez degraus, só que estava já aberta e afinal eu não era o único madrugador.
Lá fora notava-se a rapaziada acordando, qu'o
novo dia surgia. Hoje estava eu de
serviço à água, que é como quem diz, lá iria com mais oito ou nove voluntários
escolhidos, até Farim, de Unimog repleto de bidons, garrafões e tudo o que mais
houvesse, para os encher na fonte. Até
nem era uma operação difícil, pois que enquanto isso, aproveitávamos para nos
revezarmos e para ali mesmo ao lado petiscarmos. Cada qual levava alguns dos poucos morfes
sobrantes ainda da remessa que familiares enviaram e para além disso, o
taberneiro libanês também vendia alguns razoáveis produtos para as, comezaina e
bebezaina. A tarefa da recolha aquifera
terminava três viagens após o início, o que resultava mais ou menos até aí pró
meio-dia, hora mesmo boa para deglutir o almoço. A distancia do aquartelamento até à jangada que nos passava para a banda
di lá, era precisamente de três Km's (daí o nome K3)... a estrada com mais do
que menos buracos... tudo capinado à volta... vistas largas.
A rapaziada ia ao rio banhar-se e pescar.
Banhar-se mas só depois de atirar uma ou duas granadas para afugentar os
enormes crocodilos que por ali andavam e que eram o sustento de especializados
caçadores. Vendiam a carne e o bife
tenrinho. Negociavam também a pele do
monstro, depois de seca. O Higino
Arrozeiro, queria ir para França, logo após o cumprimento do dever na Guiné a
fim de poder melhor ajudar a sua mãe viúva, com quem vivia e daí o ter-me
pedido uma ajudita. Vamos nessa pá...
tenho nisso muito gosto, vou mandar vir um livro de leitura e a gramática mas
entretanto podemos já a ver os primórdios. Claro
que estranhou (mas ia tomando notas) que o "au" se lesse
"ô"... ; o "du"= "diú" ... ; o "en= â ... e
o "ou"=" ú ". Chegaram
entretanto da Metrópole os livros pedidos.
Por e devido ao facto de me ter sido dada a
hipótese de ter ido passar umas férias, interrompemos mas deixei-lhe trabalho
de casa para fazer. Sei que os fez que
bem os vi, quando regressei, mas ele já cá não estava. Partira depois de a
viatura em que seguia, ter pisado uma mina que o levou sabe-se lá para onde.
Em Bissau voltei a encontrar o meu amigo, que
jazia na capela do cemitério, a aguardar trasladação. Eu mesmo o meti no Niassa
embrulhado que estava o caixão, em quatro tábuas, não sem que o tenha
admoestado por ir daquela forma. Antes ainda ofereci-lhe com dedicatória... a
gramática... o livro de leitura e os trabalhos de casa que ele fizera, e que
não corrigi. E ali, no cais do Pigiguitti, cornetim amigo
tocou o toque de Silêncio. E eu, em
sentido, acompanhei-o assobiando... tremendo... até que o barco se diluiu no
horizonte.
(Continua)
(Continua)
Veríssimo Ferreira (2015)
Publicado por
Manuel Resende (Ferreira)
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