2 de janeiro de 2016

Post Nº 57 - Textos de Veríssimo (8)

Veríssimo Luz Ferreira
Fur. Mil. da CCAÇ 1422 - Pelundo














OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA


(continuação)
E VAI DAÍ:
“O DESERTOR”
Das duas, uma... ou eu estava a ver mal... ou aquele com as mãos no ar e a "costureirinha" bem à vista, queria entregar-se. Aproximava-se vindo do lado do que fora a estrada que ligava ao Olossato, agora desactivada. Tal como me aconteceu, outros deram por isso e em simultâneo, dirigi-mo-nos para a porta d'armas, onde por acaso até m'arranhei ao desviar o "cavalo de frisa". 1214 e curou. Tínhamos a tiracolo, a prima G3, em posição não ofensiva, mas o que poderia acontecer rapidamente. Em silêncio desconfiado aguardávamos, mas no entrementes afastei dali alguns camaradas, pois que o "tudo ao molho" poderia tornar-se perigoso e porque até nem sabíamos se não seria essa a intenção inimiga. A cena parecia-me impossível de acontecer. Normal não era, vir um qualquer incomodar-nos a horas tais, mas de qualquer forma íamos já antecipando os problemas que costumavam resultar quando se tinham de organizar colunas para levar prisioneiros a Bissau.

O inédito, prendia-se com o facto de estarmos a ver em directo, um IN armado, considerando que nem na mata se deixavam bispar, aquando nos recepcionavam e só os víramos quando a iniciativa fora nossa. Por isso houve sempre dificuldade em fazer estatísticas de quantos eram os feridos ou os eliminados. Mais tarde soube como actuavam para não deixarem rastos e era assim: Constituíam três grupos... um, com as armas com que disparavam mal (em 1965/1966, que depois aperfeiçoaram-se com a ajuda dos cubanos); o 2º grupo tomaria o lugar dos do 1º se atingidos; o 3º, arrastaria os feridos e os que já não diziam nem ai nem ui e também as armas destes. 

Daí que a contabilidade saísse quase sempre por excesso e só através da observação dos restos do líquido espesso que circula nas veias e artérias e que por ali ficara ensopando a terra já de si vermelha, só por aí repito, é que os números batiam mais ou menos certos. Voltando ao desertor: Ia-se apróchegando. Eis senão quando se ouve um tiro lá longe... acordou os nossos sentinelas, tendo um deles, espavorido, gritado:" lá vêm eles"... o furriel de dia, esse por nada deu e continuou a sesta, e nós vimos o visitante parar... tremer... fugir e recuando para o caminho donde viera, desapareceu. 

Contaram-nos que foi agredido pelos seus, mostrado como exemplo a não seguir e punido como traidor. Mas... também tínhamos momentos de puro e são divertimento, pois então. "Construíramos" para tal, um casino, num dos paióis anexos ao condomínio e para onde nos deslocávamos andando de gatas. Eram dois, a 10 metros cada do SPA e o acesso só a partir daí, se podia fazer. Um estava do lado esquerdo (o das bazoocas) e o outro do lado direito (o dos morteiros) e neste ficava então o nosso antro de prazer.

Permanecer lá, só sentados e os bancos, seis ao todo, eram os cunhetes com granadas prontas a entrar ao serviço e até a própria mesa da jogatina eram outros também caixotes cheios daqueles supositórios em forma de míssel terra-ar e que tantas vezes fizeram a diferença. O tecto houvera sido feito com cibes e coberto depois com grossa camada de cimento, porque o tesouro lá depositado, por demais precioso, merecia a obrigatoriedade de estar devidamente acondicionado e protegido. Por esse facto, não tínhamos hipótese de abrir qualquer buraco para que nós, os viciados na lerpa, pudéssemos ter algum ar, vindo do exterior.

Colmatávamos essa falta, fumando desalmadamente... bebendo mesmo sem ter sede... e a luz, fornecida por candeeiros a petróleo. Pertantus... observadas todas as regras de não segurança, mas qu'é qu'isso importava a quem vivia em permanente corda bamba? Distraía-mo-nos assim e sempre se recuperavam os dez mil-réis ontem perdidos. Comigo não... pois que perdia sempre o dobro do amealhado, facto que aceitava, na certeza de que "azar no jogo, sorte com as mulheres". Afinal e comprovei depois nos bailes da minha terra, tratava-se de grande mentira, já que me continuaram a calhar as mais feias. Quando os filhos duma “quelque chose avec” nos vinham incomodar, saíamos então ordeiramente e em magote de seis, pelo buraco onde só um de cada vez, conseguira entrar.

A minha Secção era chamada de "Armas Pesadas" e distribuídos nos foram, por isso, também três morteiros 60, que pesavam mesmo e bem o sentíamos quando os levávamos a tiracolo e nos deslocávamos durante os passeios pedestres através da agreste selva rural, assim estilo rally paper pedonal. E nem sequer levávamos, quer o prato base quer o regulador de distâncias destinado a observar para que a coisa acertasse. Considerávamos que eram apetrechos incomodativos assim mais... mariquices desnecessárias, pois que e disparados a olho nu, não falhavam e nem daquela vez em que um resolveu fugir e desaparecer, mas antes disparou, expeliu e acertou.

E deu-se porque ao sermos recebidos por intenso fogo d'artifício, ali junto à bolanha do Biribão, nós... pumba lá vai disto... mas mesmo utilizando o costumado capacete por baixo, o gajo quando lhe tocaram no percutor, afundou-se e pronto. Guardo religiosamente a chave de fendas com que substituía tal peça ao fim de quatro bojardas enviadas. Desertou? está desertado... mas também fomos culpados, dado que já acontecera com outros... na lama não se disparam tais armas... mas aquela ânsia de corresponder foi fatal.

Aquando da chegada das colunas que nos traziam os mantimentos e até o material de guerra, cabia às Companhias de destino, fazer a segurança das suas áreas e nos percursos de passagem das viaturas. Para tal, emboscava-se e patrulhava-se a fim de que o terreno ficasse desminado e preparava-se tudo nos locais mais perversos e onde já antes tinha havido problemas, para que desta vez não se materializassem. Naquele dia coube ao meu pelotão a preparação da coisa, na estrada que ligava a Bironque. Incumbido disso fui, o que fiz naturalmente, considerando os conhecimentos antes adquiridos e por via do treino que superiormente me fora ministrado ao vivo pelos " ÁGUIAS NEGRAS " de Mansabá e de Bissorã.

Minucioso saiu na escrita, só que no terreno, nada seria igual pois que a rapaziada borrifava-se, não descurando contudo, as seguranças próprias e do grupo mas lá, onde era importante, as ordens emanadas pelos superiores sempre foram cumpridas com coragem e lealdade absolutas. E foi assim, que a excursão nocturna lá partiu, organizadamente desorganizada, uns fumando para que o IN se por aí estivesse, pensasse que eram gambozinos ou pirilampos a faiscar, outros praguejando com a maldita sorte da escolha logo neste dia com tanta chuva, outros ainda maldizendo a empecilhosa lama escorregadia e as botas rotas por baixo e tudo em alta voz como convinha. 

Só que esta destemida juventude já veterana e ao primeiro sinal de alerta, tornava-se num exército disciplinado, aguerrido e cumpridor e se antes pareciam putos reguilas, então eram uns valentes combatentes, antes incapazes de fazer mal, mas depois era o "cá se fazem cá se pagam". Chegados, indiquei-lhes os "leitos" a ocupar o que não seria necessário, que já conheciam bem o esquema, mas pronto... gostavam de ouvir a minha palavra amiga...e aquele toque positivo da palmada no ombro. Para mim escolhera o primeiro lugar donde esperaria que surgissem os problemas, se tudo acontecesse como anteriormente.

A noite ainda se não fizera dia, a chuva continuava mais qu'a muita, a trovoada ribombava assustadoramente, mas o solo molhado e fofo, recebeu-nos carinhosamente. Silêncio absoluto agora, olhos mais que bem abertos, dedos engatilhados e assim se passaram quase duas horas. Já lusco-fusco, começo a ouvir e ali bem perto de mim, o ruído sereno, como o de que alguém viesse a rastejar ao meu encontro. Em alerta máximo fiquei e dei conta da situação aos camaradas do lado. Dois ou três minutos de hiper-tensão depois, aparece-me ali a três metros, uma cabecinha a espreitar e quase disparei. Ela olhou-me, eu olhei-a e creio que foi amor à primeira vista, pelo menos da minha parte nunca mais esqueci aquela que me enfeitiçou pra sempre. Nisto e num saracotear e manso rastejo, ela mirou-me longamente, despediu-se tristonha e com uma lágrima ao canto do olho, que bem na vi, saída daqueles formosos olhos azuis, mostrou-se-me tal como viera ao Mundo e lá foi suavemente atravessando para o outro lado.

Garanto-vos que eram pr'ái 5 ou 6 metros de belíssima cobra. Relembrei-a noutro dia em que e sem querer pisei, indo no jeep, uma qu'até me fez saltar para o chão com o dito em movimento, julgando eu estar a ser submetido a qualquer vil tiroteio ou ter atropelado alguma minazita mal intencionada, pois que o rebentamento fora idêntico. Entretanto lá longe, começava-se a ouvir o roncar das viaturas o que significava que desta vez conseguíramos o objectivo. Então o Cmdt do pelotão que levava o rádio, mas nem usá-lo sabia, tentou o contacto: "Alô, alô...aqui eu...diga se me escuta... ôvo".

Trocou os verbos, pronunciou mal os tempos, mas foi útil para uma saudável risota de descontracção e a ordem veio para abandonarmos o local e recolher ao K3. Como na ida, regressámos "todos ao molho e fé em Deus" e em alegre cavaqueira com a patrulha pedonal, que andara a fiscalizar no vai-vem costumado e constante. Missão cumprida portanto, tomámos o petit-dejeuner que para quem não sabe quer dizer " o café da manhã". Foi-nos dado o resto do dia para descansarmos, o que calhou mesmo bem para pôr a escrita em dia: Saudades PAI, Saudades MÃE. BEIJINHOS E ABRAÇOS PARA TODOS OS RESTANTES FAMILIARES.
(PS: de vez em quando sinto esta necessidade de vos mostrar que também sou culto e daí aquelas duas palavritas em inglês).

Naquela tarde, fui empossado num novo cargo sem remuneração, para quando estivesse com algum tempo disponível, ou seja, "começas amanhã". Chamado havia sido ao resort dos Senhores Oficiais e como era o dia dos meus anos, pensei que me preparavam uma festinha comemorativa e que triste fiquei porque afinal nenhum se havia lembrado do facto, ao contrário dos meus amigos da Secção de Morteiros 60, com quem partilhei o figadal almoço, tendo ainda estado presentes mais alguns camaradas disponíveis. Impunham-me sim, mais sub-humanas tarefas, mas compreendi, após os factos explanados, que de facto não haveria mais ninguém com as superiores e sábias condições para o fazer. E assim, fui incumbido pelo Sr. Capitão Cmdt da Companhia, de ser o desenhador-arquitecto-engenheiro, para construir as instalações onde acabaram por ser o restaurante do K3 e anexos, ou melhor dizendo, a cozinha e refeitório.

Que seja... se tem de ser... vamos nessa... amo desafios propostos à minha sobre dotada inteligência. E porquê eu? devido ao facto de saber o que era um tijolo? o cimento? a areia e até as pedras? (mas com essas não poderia contar porque ali em Saliquinhedim não havia uma sequer que fosse). Dispus-me e elaborei um majestoso plano qu'até me admirou a mim próprio. Para numa mais eficiente, rápida e assaz sei lá o quê, ousei suplantar as técnicas em vigor, decidindo começar pelo telhado em vez de pelas paredes que o aguentariam e dado que se aproximava a época das chuvas, estaríamos pelo menos abrigados.
Mas então... disse o arquitecto vaidoso: É pá, começa pelos caboucos e pranta lá os alicerces. 

Pensei... pensei... pensei, o que me fez uma bruta dor de cabeça e vendo que até era capaz de resultar, pus mãos à obra. Criei então, uma equipe de malta que não pudesse discutir as minhas ideias, ou seja... aboli à partida todos aqueles que percebessem da arte de pedreiro, pois gosto pouco de ser criticado e sabia que qualquer obra prima, mesmo bela e útil, tem sempre detractores. A coisa lá se foi fazendo, fio de prumo também não tínhamos, íamos resolvendo a olho nu, e por isso é que as paredes do edifício surgiram sem simetria, qu'é assim como dizer, que deveriam estar direitas de baixo para cima e nunca ao contrário. Ficaram mais ou menos, mas sólidas... Depois disso, deram-me então razão na questão do telhado só que e porque deveria ser instalado lá no alto, estava ali uma carga extra de trabalhos, mas fez-se com cibes.

Mandei também fazer duas portas, uma para a entrada e outra para a saída e vice versa e mais quatro janelas, duas maiores viradas para a mata para fazer ciúmes aos inimigos e as outras duas não. In's que sabíamos nos estariam a bispar cheios de fome, coitados. Numa dessas, a 1ª a seguir à porta de saída, desenhei-a propositadamente a fim de despejar todos os despojos sobrantes, que alimentariam os abutres.
E assim se completou a obra.
(continua)


Veríssimo Ferreira (2015)



Publicado por
Manuel Resende (Ferreira)



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