16 de janeiro de 2016

Post Nº 60 - Textos de Veríssimo (11)

Veríssimo Luz Ferreira
Fur. Mil. da CCAÇ 1422 - Pelundo














OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

(continuação)
E VAI DAÍ:
A 12 de Junho de 1966 aconteceu o impensável, embora a morte nos tivesse já levado em 17 de Maio último um camarada FURRIEL MILICIANO e também com a traição duma mina. Digo impensável, por ter sido ali naquele sítio. A vítima desta vez foi o nosso Capitão Dinis Corte-Real, Comandante da Companhia. E eu estava lá... e eu vi como foi. O seu jeep e o meu unimog cruzar-se-iam dentro de segundos. Tudo fora preparado, disso continuo convencido, para ser detonada à distância e só mesmo quando da sua passagem, o que até nem era habitual. Deslocava-se portanto, nesse dia e àquela hora, a título excepcional e apenas meia-dúzia, disso sabiam.

Já passáramos por ali mais de vinte vezes, a estrada fora picada aquando da primeira passagem e depois, de cinco em cinco minutos, voltávamos a fazer o mesmo trajecto com ida e volta, ora levando a água trazida de Farim, ora regressando para nova recolha e a área circundante tinha vasta visibilidade e estava capinada e para além disso tínhamos patrulhas a pé e em constante movimento de vai-vem, vigiando os três Kms que separavam o aquartelamento do rio.

Não faltou ou faltava portanto a segurança e para mim tratou-se dum atentado traiçoeiro, bem organizado e conseguido pelo inimigo. Perdi ali uma grande amizade e mais um dos INESQUECÍVEIS. Chegado ao aquartelamento foi-me dada a ordem para ir emboscar num local onde só deveriam ir tropas, com um efectivo mínimo humano, equivalente ao d'uma Companhia (O Sr. Cmdt. do Batalhão o dissera) e não apenas com nove homens tantos quantos constituíamos a Secção de Morteiros. Revoltei-me inicialmente, dados os riscos e o possível desastre, mas acatei e cumpri, como não podia deixar de ser, não sem que antes recordasse a determinação superior de que "ali não menos de150 homens a emboscar".

A progressão enviesada através da mata fi-la, após preparada com redobrados cuidados. Chegados ao local, dispus as tropas em presença, ao longo de mais ou menos 50 metros e ladeando o objectivo, que ficava perpendicular à estrada. Talvez uma hora depois, o "vigia" mais afastado, veio rastejando até mim e segreda-me: "É pá, vejo umas "sombras" e não são tão poucos como isso". Desloquei-me lá e apesar da copiosa chuva, do nevoeiro e da mata cerrada, confirmei que na verdade, haviam movimentações ali a 100 metros e que apesar da forma cuidadosa, iriam cair na boca do lobo. Alterei de imediato o dispositivo antes montado, de forma a constituir nova zona de morte para quem lá vinha (o inimigo decerto, ou muito provavelmente).

Pelas experiências antes vividas, foi minha convicção que após aí entrados, não mais de lá sairiam para contar como fora. Passados foram minutos terríveis, os dedos já tremiam nos gatilhos, e se não liquidámos o 2º Pelotão da nossa CCAÇ 1422, foi porque ouvi do lado de lá: Ó Veríssimo...NÃO DISPARES...SOU EU O MACEDO. Acontecera que, no aquartelamento e após acalorada discussão (ao que soube mais tarde), aquele Senhor ALFERES MILICIANO, tomara a iniciativa de ir colaborar e ajudar também no nosso regresso. Crente não fui ou sou, mas naquele dia e àquela hora, o destino estava lá e passou por ali, materializado naquela voz: "Ó VERÍSSIMO NÃO DISPARES".

DO INFERNO PARA O CÉU
Estando aqui a VIVER Guiné lá se foram alguns dos fantasmas que me
incomodavam desde 1967. E tenho-o feito a brincar... a brincar com os momentos angustiosos vividos, particularmente no que se refere aos doze meses no mato. Já os últimos oito meses da comissão foram passados em Bissau. Tiro... e queda... e nem ainda hoje acredito... mas na verdade tive de abandonar a minha CCAÇ 1422. Inicialmente, por motivos odiosos e alheios à minha vontade, "voluntariei-me" para fazer parte da 3ª Companhia de Comandos do Quartel General, só que essa integração após a aprovação dos exames a que me sujeitaram, não foi possível dada a chegada duma verdadeira, treinada e formada na Metrópole.

Enquanto aguardava o regresso ao ponto de partida, colocaram-me, para ajudar administrativamente, na Secção de Funerais e Registo de Sepulturas/1ª Repartição/QG e que acabei por vir a chefiar. São-me disponibilizadas, residência militar junto à messe em Santa Luzia e também uma viatura descaracterizada, um mini moke. Sem obrigações nem horários, competia-me unicamente, estar sempre disponível para enfrentar os funestos acontecimentos, inerentes à função que agora exercia.

Ao saber destes, tinham de ser imediatamente tomadas as providências para que tais cruéis notícias fossem transmitidas para Lisboa, a fim de que, do HORROR, fosse dado primeiro, conhecimento aos familiares. Impunha-se-me, que nalguns casos, fizesse o reconhecimento presencial, na morgue do Hospital Militar, se antes as Companhias onde o desenlace se dera, mo não comunicassem. Vinham a seguir, as cerimónias religiosas e toda a elaboração da documentação para a célere trasladação. Como vêem, saíra do Inferno e estava agora no purgatório nada fácil e com tantos sentimentos contraditórios, a quererem destruir-me.

O CÉU, Bissau pois. A cidade tinha de tudo... fui sócio da UDIB; ia ao cinema... ao aeroporto... ao cais ver quem chega, nem sonhando a que martírio... contrastando com a alegria dos que partiam... nos : Uige... Niassa... Manuel Alfredo... Rita Maria... Ana Mafalda. A minha presença era requerida no futebol... nos locais com boa comida... na piscina de Nhacra... nos camarões em Quinhamel... e tudo no maior sossego que por ali não se vislumbrava ainda a guerra ... nem haviam bolanhas para atravessar... nem percutores do morteiro para substituir ou sequer G3 para olear. A relação com os cidadãos, de amizade mais tarde, era excelente e facilmente nos acolhiam nos seus seios.

Existiam grandes armazéns que tudo vendiam desde agulhas a automóveis e nos mercados nada faltava. As noites eram famosas e já apareciam simulacros de boites. Em momentos vagos, visitei a Sé... o Liceu... o Palácio do Governador
(Arnaldo Schutlz então)... o Pilão... a fábrica da gasosas... o Café Portugal... o Pintosinho... a Ultramarina... a casa Gouveia... O BNU... a Rádio... as tascas que serviam ostras ao natural... enfim !!!
Turismo de guerra foi o que fiz por quase todo o Norte da Guiné, particularmente na zona do Oio e pelas matas que rodeavam Morés. Depois passei os últimos oito meses em Bissau e aí tudo foi do bom e do melhor. Até tive o luxo de ter comigo durante 2 meses a minha filha e a minha mulher.
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A certa altura mandaram-me regressar à Metrópole, mas poderiam ter tido a delicadeza de perguntar:
- Queres ir ou ficar?
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Um tal de Uíge convida-me então a vir com ele. Lisboa engalanou-se para me receber e, debaixo da ponte e com o cais de desembarque à vista, juntei-me ao enorme coro que ali já deixara a sua voz e também gritei: VIVA A PELUDA.
E hoje se por lá passarem, porque o eco ainda se houve desde a foz à nascente do Tejo, têm que saber que tais palavras foram entoadas por centenas de milhares de COMBATENTES, e que o fizeram em grande momento de felicidade.
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E SE ESCUTAREM COM ATENÇÃO, OUVIR-ME-HÃO DECERTO.

(FIM)


Veríssimo Ferreira (2015)



Publicado por
Manuel Resende (Ferreira)



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