Veríssimo Luz
Ferreira
Fur. Mil. da CCAÇ
1422 - Pelundo
EU SOU DO TEMPO EM QUE:
(Continuação)
130 - aos sete de idade, fui
prá escola, (donde saí após a formatura com a 4ª classe) primeiro ali junto à
igreja e com a Senhora Professora D. Maria Alcina e depois fui inaugurar a de lá
em cima, nas Avenidas Novas;
131 - o meu professor foi então o Sr.
Garibaldino d'Andrade;
132 - foi a época da descoberta e dos bichos da
seda;
133 - comprados pequeninos, depressa cresciam
alimentando-os com folhas das amoreiras que ali existiam numa propriedade atrás
da "balança". O caseiro fingia que não nos via e deixava que
colhêssemos as preciosas folhas;
134 - e ainda sobre o prof. Garibaldino:
135 - Ouvia mal...dava reguadas, mas era um bom homem. Tanto gostava de mim,
que bastas vezes me dava como exemplo a seguir, mesmo qu' até eu não acertasse;
136 - na época da "apanha" da azeitona, ia com o meu pai ao
"rabisco" e sempre tínhamos um ou dois litros d'azeite, para temperar
o feijão com couve;
137 - fruta também não faltava... bastava colhê-la, que a ninguém parecia mal,
a invasão das suas hortas;
138 - perninhas havia por demais, bastava ir apanhá-las (às rãs) ali atrás dos
bombeiros;
139 - a vida era simples... descomplicada.
140 - ia à escola descalço e
no Inverno, todo contente ao deslizar pelas geadas caídas durante a noite;
141 - lamentava os que iam calçados e não
brincavam para não se sujarem;
142 - jogávamos nos intervalos, ao berlinde... à
pata, ao hóquei e à porrada;
143 - fui obrigado a ir à catequese e em
resultado das presenças assim a igreja partilhava pelo Natal, 100 gramas
daquela coisa bem saborosa (manteiga) enviada para ser dada, mesmo dada, aos
mais desprotegidos;
144 - a casa Vaz, oferecia todos os sábados, um quarto de pão de milho e aquilo
era mesmo lindo: dezenas de miúdos, comigo incluído, à espera na escada de
acesso ao 1º andar;
145 - ia pr’á bicha, ao anoitecer do dia antes em que a Intendência anunciava
que iria distribuir senhas de racionamento e portanto teríamos talvez, direito
a comprar um quilo de açúcar...arroz ou massa;
146 - e ali ficava até à meia-noite a marcar vez e depois, cada um dos meus
familiares, para que às nove da manhã, nos pudesse calhar tal senha de acesso
aos produtos mencionados;
147 - época de fome? eu não disse tal;
148 - sou do tempo sim, em que uma sardinha dava para três;
149 - e até me lambia gulosamente quando via alguém a comer pão com chouriço;
150 - (assim me criei... aprendi...
enrijei e dum metro d'altura cheguei aos um metro e setenta e um d'hoje 2015).
151 - com pais como tive, foi
fácil;
152 - o meu "VELHO" Belas e a minha
mãe Sabina, estão aqui bem junto ao coração;
153 - tantos sacrifícios fizeram, tanto sofreram;
154 - ELE, servente de pedreiro...ELA, mulher a dias;
155 - NUNCA OS ESQUECEREI;
156 - e quanto mais estudava, mais ia percebendo que a infelicidade pode estar
também ligada ao mais saber;
157 - soube então o que eram a inveja... o ódio... a traição... a cobiça e
compreendi o que era a fome;
158 - aos dez fiz a 4ª classe e até a admissão ao Liceu e fui ao dentista;
159 - comecei a usar a pasta medicinal Couto;
160 - se vendia leite de porta em porta e por
medidas;
161 - 125 dcl, era o que se podia comprar embora
a leiteira deixasse sempre de cagulo;
162 - havia piscos... papó-figos... verdilhões,
melros e estorninhos, que também caíam (embora levando-as até 10 metros mas com
elas - as costelas - agarradas ao pescoço, por aí ficavam) e que bem saborosos
eram fritos após depenados;
163 - isto no Vale do Bispo-Fundeiro, porque na
Pedreira, não faltavam barbos e bordalos bem como no Poceirão onde na época
própria até bogas (que tinham de ser apanhadas com um anzol pequeno) ou salmão
e lampreia (mas antes de terem feito a barragem de Montargil);
164 - escamados e salgados ainda vivinhos,
prodigalizavam boas fritadas se pequenos, mas se grelhados, eu gostava mais;
165 - ali nos "blocos" (atrás do
cinema) apanhava enguias com um garfo e foi aí também, que aprendi a nadar à
força, com a ajuda dos mais velhos, que nos atiravam à bruta, para dentro do
rio;
166 - mais acima e à entrada da Barroqueira,
estava o moínho do Sr. Manuel Reis, onde com 20 centavos, comprava a farinha de
milho para fazer o isco;
167 - a taberna do Sr. Zé Toucinho era mesmo
logo ali a 100 metros e algumas vezes lá "matei o bicho";
168 - fui trabalhar para a moagem e os vinte
escudos ajudaram a alugar casa no "Puto Gatuno" na rua do volta
atrás, com a renda mensal de dez mil réis;
169 - pobre não tinha direito a estudar, (disseram
as autoridades:"de graça nem pensar" mas que me era permitido sim, ir
para padre, ao que o meu pai respondeu: "Vão pró Vatícano" (com
acento no i);
170 - a "ti"
Vicência, dona da taberna e mercearia onde eu ia mandado, buscar fiado
pagando-se-lhe ao sábado, apontava dez tostões fazendo um "X", cinco
uma argola ou seja "0" e um tostão um risco " / ";
171 - ao Domingo podia ficar a dormir até que a
minha Velhota chegasse da praça, onde ia comprar qualquer pequena quantidade de
peixe pouco fresco do mar, ao mesmo tempo que me brindava com cinco tostões de
"burenhol" e me fazia umas papas de farinha de fava, ou um cafezinho
de cevada na "chocolatera" tudo servido na cama de tábuas dos
caixotes de sardinha e colchão de "camisas" das maçarocas do milho;
173 - as tardes eram passadas
a ler o "Século" e ouvir os relatos do futebol ali perto no quartel dos
Bombeiros;
174 - cheguei aos catorze anos;
175 - alto lá! tudo se modificou;
176 - fui prá Banda aprender música e seis meses depois lá fiquei com o instrumento
dos meus sonhos e até cheguei a 2º trompete a actuar ora aqui ora ali;
177 - frequentei semanalmente ao sábado à noite e doutorei-me, na D. Nazaré (na
Frialva) mesmo ao lado da tasca do Sr. David que era o baterista do Conjunto
"Os Invencíveis";
178 - aos Domingos de tarde ali estava nos locais onde haviam petiscos, que um
ou outro dos meus amigos (trabalhadores como eu) levava, ou que a própria casa
preparava;
179 - ganhava já, 250 escudos e podia ter estas excentricidades, até bem
saborosas, "por adrego". Tornei-me "maniento" enfim e a
usar "marrafa" pois então;
180 - apareceu a televisão;
181 - comecei a estudar o 1º ciclo dos Liceus,
como "trabalhador estudante" e com a preciosa ajuda e incentivo de
GENTES muito boas: FAMÍLIA ARTEIRO;
182 - e assim se passaram uns belos anos:
no trabalho, passei para o escritório; aos dezoito entrei na Função Pública; nos exames liceais... fui passando; namoricos
não faltaram; bailes e comezainas qb;
183 - fiz novos amigos, estudantes no colégio, que
também me iam ajudando nas dúvidas dos livros de estudo;
184 - "nasceu" O Conde da Pedreira ali na
loja do Sr. Artur Lino, ao lado do Café Avenida e onde mais tarde surgiu a 1ª
"Casa das Iscas" do meu Amigo João Martins;
185 - aprendi que dizer "NÃO" é difícil,
mas eficaz;
186 - e em 1962, fui "às sortes" e
apurado para todo o serviço militar;
187 - casei nesse mesmo ano;
188 - a filha nasceu e logo a seguir fui "prá
tropa";
189 - e assim começaram: “Os Melhores 40 Meses da
Minha Vida”.
(Fim de: “Eu Sou do Tempo em
que”)
Os Melhores 40 Meses da Minha
Vida
E VAI DAÍ:
Por edital, soube que me
deveria apresentar em Mafra no dia 24 de Janeiro de 1964 e na Escola Prática de
Infantaria, a fim de frequentar o Curso de Sargentos Milicianos. Saí de Ponte de Sôr, pela matina e no combóio.
Em Lisboa, pedi informações para ir para o
Martim Moniz, local donde sairia a camioneta. A confusão era mais que muita e
habituado que estava a ver só tanta gente junta, aquando das feiras, pensei: Há
por aqui uma como a nossa de Outubro !!!
Bom, mas lá fui ter e parti para o destino... enquanto no entretanto comi as
duas sandes, uma de torresmos e outra de toucinho cozido, preparadas que foram
para a viagem. Mafra, surpreendeu-me, quando logo ali mirei, o convento. Será
aqui? Duvidei a princípio, mas vendo na entrada um enorme grupo de
juventude de cabelinhos cortados à inglesa curta e que esperava, a eles me
juntei.
Preenchidos que foram, uns papéis, mandaram-me para o alfaiate que tirava
medidas olhando-nos de alto abaixo, o que significou que recebi umas roupitas
bem bonitas por acaso... um bivaque onde cabiam duas cabeçorras; duas
camisas cinzentas nº 54 e eu até aí, usava 42; dois pares de calças, que
me chegavam dos pés à cabeça; duas botas 47 e eu calçava 41.... e por aí
fora salvo as cuecas, que e para andar aconchegadinho, me deram o "L"
e eu vestia o "XL" e apartava prá esquerda.
A caserna, (assim chamavam ao quarto luxuoso
onde me colocaram) era num 5º andar e 135 degraus para subir. Para me não
sentir só, deixaram-me acompanhado por mais 151 rapazes do meu tamanho, e
torná-mo-nos amigos. No dia seguinte,
reuniram-nos num espaço rectangular e a que chamaram "A parada".
Éramos, talvez, aí uns três mil, entre os que iam frequentar os cursos de
Oficiais e Sargentos Milicianos, palavra esta, que poderemos traduzir desta
forma: homens feitos, que após regresso da guerra, serão dispensados do serviço
militar obrigatório e passam à disponibilidade, ou seja: ainda poderão ser
chamados para a tropa, se houver alterações à ordem pública.
Juntaram-nos depois cá fora,
sentados no chão e rodeando o Oficial Instrutor, ali ao lado esquerdo de quem entra...
e esclareceram-nos sobre as normas em vigor, para contactos eventuais, com os
residentes civis e também como distinguir os postos militares. Ficámos a saber,
que a coisa começava desta forma: Recrutas... cabo... Furriel... Sargento...
Aspirante... Alferes... Tenente... Capitão... etc; General...
Marechal... E finalmente: 1º Cabo Miliciano.
Contentíssimo fiquei. Então não é, que o filho do meu pai, eu
próprio, iria alcançar o mais alto posto, lá para Agosto e já especialista
de Infantaria? e 1ª classe em metralhadora Dreyse 7,9 ? e 3ª classe em
espingarda Mauser? e 1ª classe em comportamento? e atirador,
terminada a instrução complementar?
(Continua)
Veríssimo Ferreira (2015)
Publicado por
Manuel Resende (Ferreira)