Veríssimo Luz Ferreira
Fur. Mil. da CCAÇ 1422 -
Pelundo
OS MELHORES 40 MESES DA MINHA
VIDA
(Continuação)
E VAI DAÍ:
Fascinado
ainda, com o facto de ter visto Lisboa... aviões dos grandes... e barcos a
atravessar um rio a que ouvi chamarem Tejo e ter ainda a possibilidade de também,
poder ir ver pela primeira vez, o mar... as praias da Ericeira e mais agora
esta notícia! Continências e divisas, foram-nos mostradas, bem como o manejo
dos fuzis... o seu desmanchar em bocados e limpeza com o escovilhão.
No 3º dia e após o pequeno almoço, começou a preparação para que pudéssemos vir
a ser militares disciplinados e bravos. Corridinhas na tapada... rastejar no
meio da trampa... percursos de combate... saltos para o galho... jogos de brutobol...
tiro na carreira do dito... actividades desportivas com vários empecilhos no meio...
audição dos gritos estridentes e ameaçadores dos monitores do pelotão... enfim...
toda uma panóplia útil que só mais tarde entendemos ter sido preciosa para que
aqui e agora estejamos ainda semi-vivos e, ah, sempre de capacete enfiado... no
local próprio de enfiar capacetes. Regressávamos depois e quase na hora do
repasto. Banhito tomado, corneta a tocar e ala que são horas de almoço. Boas
refeições sim senhor e até vinho havia e da cor que entendêssemos, embora eu
achasse que aquilo era mais água...
A INVENÇÃO DO "XIS"
Enquanto ali e foram cinco meses, uma das instruções que nos prodigalizaram,
foi precisamente o treinar visando um "xis" que desenhávamos em
qualquer vetusta árvore da tapada onde ensaiávamos as guerras. Com os pés bem
paralelos e melhor assentes no chão, à distância um do outro de mais ou menos
20 cm, e com o objectivo a 4 ou 5 metros, íamos atirando-lhe pedrinhas num
movimento brusco. Diziam-nos e eu acreditei, que esta era a forma de aprender a
disparar sem apontar com a G3, quer fosse no tiro a tiro, quer de rajada...
Em princípio pensei que se tratasse duma forma de nos concederem alguns bons momentos
de descanso e ainda por cima naquele local paradisíaco.
Verifiquei depois e com
a arma já na mão, que na realidade a coisa até funcionava mesmo. Também
treinávamos enquanto instruendos, o atirar da faca de mato contra quaisquer
outras árvores, se possível de tronco preto. A intenção era a de possível
eliminação de sentinelas, é verdade. Hoje mesmo e às vezes a brincar com a que
estripo e escamo os achigãs e a atiro contra qualquer salgueiro ali à borda...
acerto sim nos pobres peixes.
De qualquer forma ali passávamos por aqueles
momentos em sossego depois do matinal
cross, que é assim uma espécie de maratona, em fato de trabalho e a correr de
quando em vez, com cantil cheio, capacete e arma de fogo e com a barriguinha
pesada do pequeno almoço tomado em púcaro d'aço e composto de qualquer mistela
a que chamavam café com leite em pó, desfeito na amarelada água do convento.
Em tais crosses do que mais gostava era quando os Exmos
Instrutores diziam uma frase do estilo: "a
tua prima é boa?". Nós correndo e ao
bater do pé direito teríamos de responder: " É
"; "Angola é nossa? " E a gente
tadinhos: " É".
Em Abrantes e Tomar onde tive a honra de ajudar a
preparar recrutas, inventei novas perguntas que e sendo essa a intenção,
divertiam e ajudavam a suportar o sacrifício. Frases bem simples, maliciosas
qb, mas que não posso dizer pois qu'a minha superior educação não permite
recordar tamanhas indecências.
Aquela noite prometia deveras. A minha 1ª Companhia, acampara ali a seguir ao Sobreiro,
mais propriamente na Achada, e do lado esquerdo de quem vai de Mafra para a
Ericeira. Antes da saída do convento,
fora-me transmitido que levasse o fato à civil, o que estranhei, pois que se
íamos para passar uns dias no mato, para quê as calças, camisa, blusão azul,
sapatos e meias? O local era porreiro, junto
a um riacho, cheio de pinheiros, e foi ali mesmo que se montaram umas tendas
onde coubemos os 150... oficiais e tudo... a cozinha de campanha... três jeep's
.
A povoação ficava lá no alto e dera para ver que
lugares prazentosos não faltavam, assim nos conseguíssemos desenfiar, para
usufruir. Criaram-se postos de segurança...
porta d'armas... a tenda do Comando... enfermaria. Dava portanto para entender que a guerra iria ser dura,
só que ainda não sabíamos contra quem, mas o ar fingido dos Oficiais, fazia-nos
perceber que não seria pêra doce. Chegada a
noite e consultada a lista de serviço, verifiquei que todos os meus camaradas
estavam nomeados, quer fosse para Sargento de dia, quer para... quer para, mas
o meu nome não aparecia em nenhuma tarefa, o que me intrigou mas também
esperançou a que viesse a ter uma noite descansada.
Não o foi... foi melhor do que isso. Graças ao "inimigo" apanhei a maior
"torta" da minha iniciada vida na tropa. Chamado ao Cmdt do
pelotão, sou então informado do porquê de ter levado o paletó e
quejandos. Fui de imediato
empossado na minha função de espião ou seja, de tentar conviver com as
patrulhas inimigas, nas tascas lá de cima na povoação. Haveria de lhes conhecer os planos e localização, e
competia-me a mim, sondá-los...
Daí a pouco parti, ou melhor, levaram-me até lá
num dos jeep's, para não aparecer de sapatos sujos ao encontro que
provavelmente iria ter e tive. Também me
abonaram com 15 mil réis, para pagamentos a fazer das bebidas a sorver,
tendo-me entretanto sido ministrado um curso rápido à James Bond, para conseguir
as informações pretendidas.
Qual morador no local, fui
serenamente passeando pela estrada, onde ainda transitavam duas carroças, puxadas, uma por um
animal de raça asinina (portantus... um
burro de quatro patas) e a outra, com mais potência
por dois mulares (ou seja, verdadeiras mulas). Eis senão quando, miro lá dentro, na taberna que fazia esquina com uma
rua perpendicular à via principal, miro lá
dentro repito, 3 "tropas" de Mauser
a tiracolo e tudo... e que eram mesmo quem eu procurava. Entrei, dei as Boas-Noites e fui correspondido até
pelo Sr. João, o taberneiro, com quem eu
havia estado antes e por isso lhe sabia o nome. A noite estava húmida, algo fria e aqueles não resistiram ao chamamento do local quentinho, qu'até o lume tinha
aceso ali ao meio da sala de convívio.
Palavra puxa palavra, acabei por oferecer um
copo aos bravos militares, 4 pois que
entretanto chegou outro que houvera saído do WC:.
Aceitaram e fui-os questionando: "Onde estão?"... "São de
Mafra?"... "Quantos são?"... "O vosso Comandante é Fulano?"... enfim, uma actuação de
verdadeiro profissional acabado de ser doutorado, ou seja... eu. Na verdade saquei o que podia, não desconfiaram de
nada, e ao fim de duas horas assisti a
uma deveras e acesa discussão, provocada pelos alcoóis ingeridos, pois que aguentavam pouco, ao contrário do que
acontecia comigo que desde pequeno, mamava
tinto. Dos quatro, dois queriam ir ao bordel que
sabíamos bem onde era e os outros dois
mais calmos propuseram que fôssemos ao local onde estavam instalados, deitar abaixo um vinhito americano de sua
pertença. Era em Pinhal dos Frades, (como
afirmaram e bendita inocência que nem precisei de perguntar). Calhava mesmo bem, pois disse-lhes que "moi
même" vivia ali para esses lados. Acabei
por os acompanhar... bispei qu'até os sentinelas dormiam e lá me dessedentei de
novo.
Regressei depois a penates...
"desbronquiei" tudo... louvado fui e nessa madrugada o ingénuo
inimigo foi atacado por dois dos nossos pelotões, graças à minha perspicácia
evidentemente. Aquilo foi fazer
prisioneiros, primeiro os vigias, depois entrámos com grande à vontade e
abarbatámos toda a Companhia. Dois anos mais tarde, recordámos (eu e um dos 4
daquela noite e agora Alf.Mil. do meu BCAÇ 1858) tal episódio e enquanto
tomávamos um aperitivo no Café Portugal, junto à Praça do Império, Bissau.
Rimos a bandeiras despregadas e quem nos viu,
decerto pensou: -"Estes
amaluqueceram". Entretanto vieram as
marchas finais.
Era Junho de 1964 e o local, uma zona de pinhais
e mato rodeando as culturas próprias dos
pequenos agricultores que se esgadanhavam para tirar um pouco proveito daquele trabalho árduo. Viam-se por ali, de sol a sol, escavando... escavando,
só parando ao ver os escanzelados
militares em manobras a quem ofereciam um cigarrito,
um copo do vinho que faziam para consumo próprio... uma fruta. E digam lá se a isto não se chama solidariedade?
Esta iria ser a última semana difícil em Mafra,
terminando assim os cinco meses de
recruta e passávamos a 1ª fase para chegarmos a 1ºs cabos-milicianos. Houve rigor e tudo parecia ser mesmo uma guerra a
sério e até nos era permitido o acesso a
verdadeiras balas embora de madeira.
As situações treinadas assemelhavam-se à
realidade das matas africanas e sempre
supervisionadas por Oficiais Instrutores oriundos da Academia Militar, com experiência quer na preparação de homens,
quer até, alguns, já conhecedores da
verdadeira tormenta africana. Ambicionávamos
que aquele malvado tempo passasse depressa, porque logo após, teríamos o gozo de um mês de férias, antes do
reinício do que se chamava especialidade,
que todos nós escolhêramos, acreditando ser possível. Claro que a maior parte foi cair na de atirador,
com'a mim. Feitas as pazes com o inimigo,
outros d'outras companhias e também instruendos,
procedeu-se ao regresso, em passeio pedonal de trinta e cinco Km.
O estado físico geral era pior que mau, mas o
ânimo voltou quando, ao chegarmos às
imediações do quartel, fomos subitamente atacados pelo Hino Nacional abrilhantado pela Banda Musical Militar.
E o inimaginável aconteceu: aqueles verdadeiros
homens cansados, arrebentados, tristes e
acabrunhados, revigoraram... marcharam garbosamente...
endireitaram-se... honraram a farda... tornaram-se capazes até... de chorar. Domingo à espreita... e deu-se a cerimónia do "Juro,
como Português e Militar... defender a
minha Pátria... mesmo com o sacrifício da própria
vida". Fomos então autorizados a
sair e pela 1ª vez, de civis vestidos, para o retorno não definitivo à vida, que sim, essa era a nossa de antes e
que iria ser a de depois. Descer aqueles degraus do 5º andar até cá baixo, nunca
me atrevera a pensar que me saberia tão
bem. Foi o correr para a boleia do
Miranda que fez o favor de me deixar em S.ta
Apolónia.
Depois... o chegar a casa... o
reencontro com os familiares... a festa...
a galinha assada nas brasas... o reconhecer de novo de que "como é bom ser gente"... poder ir à
pesca... nadar nas águas límpidas do rio
Sôr... o colher da fruta na horta... o comer uns passarinhos fritos... dormir que nem um justo. Até que um dia e só haviam passado trinta, lá
veio a desmancha prazeres da informação
de que me devia apresentar em Tavira para completar
o processo e poder usar as divisas de duas riscas encarnadas viradas para o cachaço e ainda outra mais pequena
apontando o chão e inseridas ainda num
paninho verde.
(Continua)
Veríssimo Ferreira (2015)
Publicado por
Manuel Resende (Ferreira)