Veríssimo Luz Ferreira
Fur. Mil. da CCAÇ 1422 -
Pelundo
E A
GUINÉ SEMPRE PRESENTE
Memórias
avulsas
I
Se ao pisar o cais de desembarque
(em finais de Abril de 1967) plagiei e gritei: "mulheres... cheguei"
julgando eu, que a vidinha me iria correr melhor, mas depressa me dei conta que
estava errado. Voltei para o anterior emprego de funcionário público... para
vocalista do Conjunto Sôr-Ritmo... para a arbitragem de futebol... e eu sei lá
o que fiz para me manter activo!
E assim se passou um ano, naquele ram-ram, com as sem jeito, mas costumadas
conversas de café. No fundo, começava a sentir a saudade dos "meus"
da 1422. E que falta me fazia, aquela adrenalina anterior... a alegria do
"acordar" e de continuar vivo. E que falta me estava a fazer aquela
camaradagem que houvera tido e que sabemos quão boa e saudável. Numa tentativa
de alterar qualquer coisa que ainda nem sabia bem o quê, rumei à capital do
Império, onde amenizei saudades conversando com a rapaziada amiga e com quem
convivera a maior parte dos meus melhores 40 meses da minha vida.
Aqui, Restauradores em Lisboa, onde
iniciei a profissão de bancário, acabei por me envolver de novo com tudo o que
se ia passando, por lá longe. Primeiro, pelos contactos que começaram a
acontecer com os ex-soldados Domingues, Soares e Lavado, com o ex-1º Cabo,
Fernando Nascimento da minha Secção de Morteiros 60, com o ex-fur. Mil. Raul
Durão, com os ex-alf. Mil's Macedo e José Simões mensalmente, com o Gualter,
com o Formigo (estes dois também ex-furriéis) e mais ainda com alguns camaradas
doutras companhias chegantes e com quem, ia acabando por me actualizar.
E em 1970 ou 71, fiz amizade, que
se manteve por muitos e bons anos, com um Senhor Capitão, acabado de chegar do
comando duma CART, operacional. Como não poderia deixar de ser, lá vieram as
memórias e alguns relatos, embora a sua relutância pelo narrar coisas que lhe
eram dolorosas, mesmo sendo Homem experimentado e esta tinha sido a sua 3ª
comissão. Criámos um dia semanal para almoçarmos e algumas vezes com outros
seus camaradas, Oficiais do Quadro e com quem eu aprofundava o mais saber. Em
1974, quando se deu a revolução, que tantos ódios (esperava-se o contrário e eu
próprio, feito tonto, esperei mais amor, mas este foi-se e nunca mais voltou),
que tantos ódios, repito, trouxe a este já pobre País, recebia-me ali no QG ali
em S. Sebastião da Pedreira. Na porta d'armas identificavam-me, telefonavam...
mandavam-me entrar até que, duas ou três vezes depois: Ah... é o "Capitão" Veríssimo...
pode entrar... vem para o cafézinho com o Nosso Major.
E foi assim que soube do desaparecimento físico, na estrada do Pelundo para
Jolmete dos nossos homens (sete) através dum selvático assassínio; e foi assim
que tomei conhecimento da operação a Conakry, que tanto me enche, ainda hoje,
de orgulho; e foi assim, que soube da morte do Amílcar Cabral, cuja causa ainda
hoje não esclarecida, embora a versão à época, seja bem diferente das que, de
quando em vez por aí circulam.
II
MEMÓRIAS QUE PODERÃO ESTAR NO FUNDO
DA ARCA
É um facto que contado tudo o que passámos poderão existir ainda uns
resquícios, bem lá no fundo da memória e há que procurá-los. Eu próprio,
continuo com dois meses muito nublados e sem saber o que aconteceu não só
comigo mas também com a minha CCAÇ 1422. Porque nada tenho que fazer, para além
de pescar, fazer o almoço e comê-lo, andar o qb a pé mas pouco que já me pesam
as pernas, calçar embora com dificuldade, as meia elásticas, extraí-las à noite
o que ainda é mais difícil, tenho lido bastante sobre aquela Guiné. Para
os que lá estivemos antes de 1971 as situações descritas, estão cheias de
coragem, carácter e valor sempre com um espírito de heroísmo e o sentir do
dever cumprido, enquanto as posteriores e particularmente uma ou outra dos anos
1972 a 1974, afirmam um desespero constante, desânimo e o desejo de a abandonar
depressa.
O sonho destes, cumpriu-se com a descolonização exemplar e não porque a guerra
estivesse perdida, verdade se diga até, que alguns dizem nunca terem dado um
tiro e até sentem orgulho por o não ter feito e outros dão loas aos
guerrilheiros e até aos desertores, esquecendo que se estes criançolas,
cobardemente o não tivessem feito, também a estadia forçada, que nalguns casos
ultrapassou os 24 meses, poderia ter sido bem menor. Para estes, os que fugiram
deixem que cite Teixeira de Pascoaes: "SABEIS, Ó COVARDES, O QUE É SER SOLDADO? É NÃO COMER QUANDO SE TEM FOME,
NÃO BEBER QUANDO SE TEM SEDE E PODER COM O COMPANHEIRO FERIDO ÀS COSTAS, QUANDO
NÃO SE PODE COM O SEU PRÓPRIO CORPO".
Outros atrevem-se a lascar postas de pescada, opinando como resolver tudo,
AGORA, quando lá, se escondiam e até se orgulham de não terem actuado como
deviam. Levam-me a crer que bem lá no fundo sentem remorsos, terão poucos
amigos e até sentirão vergonha de si próprios. Sentem-se revolvidos por dentro?
Aguentem... cumprissem com a vossa obrigação em vez de se esconderem nas baga-bagas
e nos poilões. Nós, cada dia, o que desejávamos era sobreviver mais outro, na
companhia dos nossos companheiros de infortúnio, que generosamente partilhavam
do mesmo sentimento, da mesma luta, que bem sofrida foi. Defendia-mo-nos para
não morrer... cumpríamos um dever obrigatório... quer fôssemos tropas
milicianas ou do quadro e não nos acobardámos. Falo do que conheço e do que vi
enquanto no mato.
III
Foi uma vez, num dia de Setembro de
1965. A CCAÇ 1422, é "convidada" a ir até Mansabá, para "aprender".
A minha Secção de Morteiros 60 é destacada para acompanhar um dos pelotões dos
velhinhos ainda de farda amarela, numa operação marcada para essa noite e claro
que desejosos de entrar em acção, contentíssimos ficámos por finalmente irmos
saber como era aquela coisa da guerra e ganhá-la pois então. Chovia
torrencialmente, a selva escura.... a progressão demorada e cheia de silêncios,
mas lá chegámos ao objectivo, que rodeámos sem termos sido detectados. Foi-me
determinado que incendiasse as moranças frente do local onde estávamos
emboscados, logo após a ordem que receberia depois da fogaracha que iria
acontecer e aconteceu e também que disparasse ao ver algum elemento armado o
que também fiz. Entretido, dei a determinada altura, que estava só, com os meus
oito homens, porque os outros que viera coadjuvar, já por ali não estavam. Sem
guia, sem saber por onde ir, mas temente a morteiradas que começavam a cair,
enviadas pelo IN, decidi organizar a defesa possível, enquanto esperava que
alguém desse pela nossa falta e nos resgatasse. Meia hora depois tal aconteceu,
vieram o Senhor Alferes, Cmdt do grupo, um guia e o "Manel de Mora",
com quem convivo uma vez por ano e também a recriminação suavizada por ser a
minha 1ª vez: É pá, f...-se, podias ter sido comido vivo, aquilo era para
destruir e abandonar em passo de corrida.
FOI OUTRA VEZ EM SETEMBRO, MAS DE 1974
Depois... veio o não reconhecimento pelo facto de ter cumprido o serviço
militar obrigatório e ter cumprido o meu dever: um grupo de pobres gentes,
manifestavam-se (falo da época das ocupações, lembram-se?) numa estrada em
frente a um Hospital e a quem buzinei para passar no meu bólide de 40 contos
novo em folha, mas essas gentes resolveram atirar-me pedrinhas o que me
desagradou sobretudo. Claro que saí, e perguntei do porquê, pois que eu nem
pertencia à administração, nem enfermeiro era. A resposta veio pela voz de duas
mulheres presentes ali na turba: Foste combatente na Guiné, colaboraste com os
fascistas, és fascista. Outra argumentou: E ainda por cima, tens um carro novo!
Pois bem, segundo a maldade que imperava então, só os desertores eram
considerados e recebidos com pompa. Foi o tempo da gritaria do "acabemos
com os ricos" ao contrário do que hoje acontece em que estão, sem gritar,
a acabar com os pobres. No fundo nada mudou, nem o tratamento que continua a
ser dado aos Combatentes, que lá longe no "paraíso" onde estivemos,
muito do pior presenciámos.
Veríssimo Ferreira
2016
Publicado por
Manuel Resende (Ferreira)