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6 de janeiro de 2016

Post Nº 58 - Textos de Veríssimo (9)

Veríssimo Luz Ferreira
Fur. Mil. da CCAÇ 1422 - Pelundo














OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

(continuação)
E VAI DAÍ:
Março de 1966 e nove meses de comissão completados. A continuar assim regressaremos à Metrópole passados que sejam outros onze. A construção da cozinha estava quase, mas não foi fácil, qu'os catarpiladores inimigos tentaram destruír tudo à noite e a tiro. Só que mais teimosos que nós não eram e a obra acabou por ser feita, também e porque, entretanto, lhes arrasámos o bunker privilegiado que usavam para o derrube... Estava em local quase impossível de detectar e a ninguém passou pela cabeça que ali fosse. Descobriu-o acidentalmente, um dos nossos, comedor (e eu comparsa) incansável de pombos verdes e coelhos, que, caçando certo dia, junto às exteriores redes de arame farpado (e eram três devidamente adornadas com garrafas vazias e que provocavam o efeito de sineta, aquando dalguma invasão se a houvesse e houve, sendo que na maioria das vezes, menos duas, eram macacos distraídos,) "um dos nossos" repito, apercebeu-se que um dos maus, entrava para um embondeiro.

Irreal nos pareceu, logicamente, mas para que o diabo as não tecesse, fomos confirmar e lá estava a árvore... escarafunchada... oca o suficiente para que coubesse um marmanjola e até tinha dois buracos, estilo binóculo, virados para o aquartelamento. Esclarecido ficava assim, o porquê de que sempre que saíamos por aquele lado, nos mandavam com alguma desalmada e mal intencionada fogaracha. Reunimos a equipe das demolições da Companhia, consultámos os nossos mais que maquiavélicos especialistas em desratização, capazes de acertar em qualquer melga a cem metros, planeámos o que havia a planear e pós cinco demorados minutos de intenso debate, foi escolhido o momento certo para a operação, existindo unanimidade da certeza que só avançaria quando tivéssemos a prova, que o voyeur estava mesmo mirando.

Numa espera, cuidadosamente secreta, resultou que no dia seguinte nos informam através do telemóvel ANGRC9, que um individuo cujo respectivo, entrara e que não estava só. Três outros, armados até aos dentes, acompanhavam-no, o que nos levou a nós "os cérebros" a supor que, sendo quatro iriam jogar uma suecada. Feito o conveniente rastreio de aproximação, a fim de lhes enviarmos as duas preparadas epidurais... estas lá  foram... quase em simultâneo... após a breve ordem de "vai". E mais uma vez, aquelas, pintalgadas de verde-militar bazookas, não falharam, também graças àqueles utilizadores de mãos de ouro, assaz experimentados. O parto, ou melhor, o partir (do embondeiro) envolto em pó qual pulverização sheltoxkiana, estava concluído.

É provável que tenhamos interrompido a jogatana em curso, porque ao visitarmos, posteriormente, o sítio, encontrámos muitos e variagados vestígios, não só de cabidela, como também o chão, estava vermelho, e mais ainda... cartas dum baralho interrompido e dois ases de paus, o que nos levou a concluir, que um dos quatro intervenientes, era, mesmo, um grande batoteiro. O meu amigo felupe, o 44, propôs-se a tirar-me uma arreliadora matacanha. Devidamente desinfectado tinha já um afiado alfinete de dama... sentou-se de frente a mim, pegou-me nos pézinhos tamanho do sapato 43, e olhou-os assim estilo quando miro aqueles de coentrada.
Eu entretinha-me a tomar Cavalo Branco. Tira lá isso sem me magoares, que bebes a seguir... Bebeu após me apresentar aquela bolha cheia de bichinhos lá dentro, fazendo lembrar os cachos de chocos a nascer, que se vêem nas praias.

Este rapaz, de quem fui muito amigo e ele meu também, mereceu-me toda a atenção e dediquei-lhe algum do meu tempo disponível. Fazia perguntas e queria saber mais... ele fosse sobre o nosso modo de viver em Portugal... os costumes, os usos... o significado de palavras e custava-lhe acreditar que o Mundo fosse da forma como eu lho descrevia. No fundo, o meu Mundo também só era o Alentejo do Alto e foi presunção querer Alentejanizá-lo. Divertia-se quando lhe expliquei que comíamos o porco de várias maneiras o que de todo ele repudiava com o "bé" que suponho ser assim uma espécie de "porra". Ensinei-o a jogar dominó com umas peças com desenhos de posições sexuais e ria, ria muito, o que também ainda hoje faço quando se m'alembra a cena. Perguntou-me também sobre os Deuses, sim que ele estranhava haver mais do que um.

Dentro do pouco que sabia sobre tal, lá lhe fui explicando o possível. Falei-lhe de quando menino de escola, ter quase obrigatoriamente que frequentar a igreja e saber até o Pai-Nosso, mas só até àquele certo dia em que descobri que as senhas que recebia por ir à catequese e com as quais me davam pelo Natal 125 g de manteiga, ou mais, dependendo do nº de presenças, eram a forma de me cativarem para a religião, o que me desgostou. E mais ainda... ao saber, que a manteiga vinha da América oferecida e para ser distribuída pelos mais pobres, revoltei-me. Mas mais lhe disse: Contudo, não deixei de lá ir, mas ficando cá fora, aquando da saída das missas e para ver, as miúdas. De qualquer forma, continuei, o teu a quem chamas Alá, gosta mesmo de mim, e tanto tanto, qu'até te mandou criares porquinhos e não os comer, qu'esse será crime a ser cometido por este teu amigo, já pecador confesso.

Mas... o meu deixa as mulheres andarem nuas da cintura pra cima e o teu obriga-te a despir as da tua raça... e enquanto assim falava, lá punha de novo a bocarra escancarada, com a dentuça branca toda à vista e batendo ruidosamente os pés no chão barrento. Ganhaste malandro, pensei...mas deixa que havemos de voltar ao assunto, grande amizade ficou entre nós e para além disso foi óptimo colaborador militar da CCAÇ 1422, pois que sendo conhecedor do terreno que nos competia gerir ali no K3, foi um excelente guia para além de também e disfarçadamente houvesse sido meu segurança particular: "
"Não se cheguem ao "nôsso furié" que têm de se haver comigo, parecia ele dizer olhando para a mata". O sonho dele era poder vir a "conduzir" aviões e helicópteros e fez-me vários pedidos para que eu intercedesse nesse sentido. Na verdade e sem saber como lhe responder sem o magoar, adiei a questão até que um dia lá consegui dizer-lhe a verdade e em contrapartida convidei-o para ir aprender primeiro a "pilotar" a GMC que costumava ir à frente quando em coluna, íamos recolher os abastecimentos no caminho esburacado que nos ligava a Mansabá.

Para tal tive a permissão superior, embora um senhor alferes se tenha mostrado contra, argumentando que ele poderia desertar e levar-nos a viatura. Nem estava mal pensado, mas dada a conduta do rapaz e conhecendo as famílias, lá se procedeu conforme o meu pedido e era vê-lo todo vaidoso e já encartado, ao volante do Unimog da água. Conheci-lhe a família toda na sua tabanca em Farim. Partilhámos bianda e galinha de chabéu preparada pela sua mais bela mulher, a Fátima e não gostei mas tive de aceitar muito honrado, que pusesse o meu nome num dos filhos que houvera nascido. Em Abril de 66, julgo eu, e porque o vagomestre iria a Bissau, para consultas médicas, foi-me ordenada colaboração, (conhecida que era a minha fama por muito comer e melhor beber), no sentido de criar outras e melhores alimentações a fornecer aos 150 elementos que constituíam a Companhia.

Aceitei o desafio e com a tesouraria disponível fez-se. Para já o menú habitual (a tal dobrada) passaria só a ser disponibilizada 5 dias por semana, porque ao Sábado propus-me apresentar um prato novo e fiz o que ficou conhecido por "varrasco à K3". E ao Domingo, "restos à Brás", aliás, prato baseado no bacalhau à dito, só que não havendo este, aproveitava os sobejos do dia anterior, desossavam-se, misturava umas batatitas finas, mais uns ovos e enfim... comia-se e que me lembre nunca sobrou. A questão principal, punha-se mais, em como e onde arranjar porcos para tanta gente, o que entretanto se resolveu com a preciosa ajuda do condutor do jeep que me acompanhou às compras em Farim. Ele tinha uma lábia fora de série, até falava (inventava) quaisquer dos dialectos, ele até era palhaço de circo na vida civil e facilmente convencia o povo das tabancas dali dos arredores.

Nem sempre, foi assim tão elementar mas lá dava a volta. Na 1ª semana tudo correu bem e com 50 pesos comprava um bísaro, mas logo na 2ª pôs-se a questão dos inflacionados preços que nos exigiam. É que aumentaram o produto para o dobro. Por proposta que aceitei, foi-me dito claramente: meu furriel, deixe o assunto comigo, hoje faço as compras sozinho, vá cumprimentar os amigos que eu resolvo a dificuldade e vai ver que não nos faltarão provisões porcinas, durante mais uns tempos. Tenho influências aqui na população e resolverei isto a nosso contento, não gastando mais e recebendo a mesma quantidade. Lá foi... e lá voltou e trouxe a mercadoria em causa e durante mais duas semanas nada faltou.

Claro que, mais tarde procurei saber como fora possível que o camarada condutor tenha dado a volta aos vendedores e questionei-o. Recusou-se ao princípio mas lá acabou por me revelar a arte posta na negociação e que ele bem sabia que aquisições, como e da forma que as fez, não teriam a minha concordância e daí ter-me procurado manter afastado. Então foi assim, confessou: O que aconteceu é que antes das mercas efectuadas, dei umas voltas, fiz umas manobras de risco, como se em rally andasse, dei umas trancadas, passei por cima dum e ficou-se logo, parti as pernas aos outros dois, de forma que e quando me pediram 100, eu lhes tenha dito: “É pá 100, se estivesse vivo pagava, mas assim já morto e aleijado só dou 50."
(continua)


Veríssimo Ferreira (2015)



Publicado por
Manuel Resende (Ferreira)



2 de janeiro de 2016

Post Nº 57 - Textos de Veríssimo (8)

Veríssimo Luz Ferreira
Fur. Mil. da CCAÇ 1422 - Pelundo














OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA


(continuação)
E VAI DAÍ:
“O DESERTOR”
Das duas, uma... ou eu estava a ver mal... ou aquele com as mãos no ar e a "costureirinha" bem à vista, queria entregar-se. Aproximava-se vindo do lado do que fora a estrada que ligava ao Olossato, agora desactivada. Tal como me aconteceu, outros deram por isso e em simultâneo, dirigi-mo-nos para a porta d'armas, onde por acaso até m'arranhei ao desviar o "cavalo de frisa". 1214 e curou. Tínhamos a tiracolo, a prima G3, em posição não ofensiva, mas o que poderia acontecer rapidamente. Em silêncio desconfiado aguardávamos, mas no entrementes afastei dali alguns camaradas, pois que o "tudo ao molho" poderia tornar-se perigoso e porque até nem sabíamos se não seria essa a intenção inimiga. A cena parecia-me impossível de acontecer. Normal não era, vir um qualquer incomodar-nos a horas tais, mas de qualquer forma íamos já antecipando os problemas que costumavam resultar quando se tinham de organizar colunas para levar prisioneiros a Bissau.

O inédito, prendia-se com o facto de estarmos a ver em directo, um IN armado, considerando que nem na mata se deixavam bispar, aquando nos recepcionavam e só os víramos quando a iniciativa fora nossa. Por isso houve sempre dificuldade em fazer estatísticas de quantos eram os feridos ou os eliminados. Mais tarde soube como actuavam para não deixarem rastos e era assim: Constituíam três grupos... um, com as armas com que disparavam mal (em 1965/1966, que depois aperfeiçoaram-se com a ajuda dos cubanos); o 2º grupo tomaria o lugar dos do 1º se atingidos; o 3º, arrastaria os feridos e os que já não diziam nem ai nem ui e também as armas destes. 

Daí que a contabilidade saísse quase sempre por excesso e só através da observação dos restos do líquido espesso que circula nas veias e artérias e que por ali ficara ensopando a terra já de si vermelha, só por aí repito, é que os números batiam mais ou menos certos. Voltando ao desertor: Ia-se apróchegando. Eis senão quando se ouve um tiro lá longe... acordou os nossos sentinelas, tendo um deles, espavorido, gritado:" lá vêm eles"... o furriel de dia, esse por nada deu e continuou a sesta, e nós vimos o visitante parar... tremer... fugir e recuando para o caminho donde viera, desapareceu. 

Contaram-nos que foi agredido pelos seus, mostrado como exemplo a não seguir e punido como traidor. Mas... também tínhamos momentos de puro e são divertimento, pois então. "Construíramos" para tal, um casino, num dos paióis anexos ao condomínio e para onde nos deslocávamos andando de gatas. Eram dois, a 10 metros cada do SPA e o acesso só a partir daí, se podia fazer. Um estava do lado esquerdo (o das bazoocas) e o outro do lado direito (o dos morteiros) e neste ficava então o nosso antro de prazer.

Permanecer lá, só sentados e os bancos, seis ao todo, eram os cunhetes com granadas prontas a entrar ao serviço e até a própria mesa da jogatina eram outros também caixotes cheios daqueles supositórios em forma de míssel terra-ar e que tantas vezes fizeram a diferença. O tecto houvera sido feito com cibes e coberto depois com grossa camada de cimento, porque o tesouro lá depositado, por demais precioso, merecia a obrigatoriedade de estar devidamente acondicionado e protegido. Por esse facto, não tínhamos hipótese de abrir qualquer buraco para que nós, os viciados na lerpa, pudéssemos ter algum ar, vindo do exterior.

Colmatávamos essa falta, fumando desalmadamente... bebendo mesmo sem ter sede... e a luz, fornecida por candeeiros a petróleo. Pertantus... observadas todas as regras de não segurança, mas qu'é qu'isso importava a quem vivia em permanente corda bamba? Distraía-mo-nos assim e sempre se recuperavam os dez mil-réis ontem perdidos. Comigo não... pois que perdia sempre o dobro do amealhado, facto que aceitava, na certeza de que "azar no jogo, sorte com as mulheres". Afinal e comprovei depois nos bailes da minha terra, tratava-se de grande mentira, já que me continuaram a calhar as mais feias. Quando os filhos duma “quelque chose avec” nos vinham incomodar, saíamos então ordeiramente e em magote de seis, pelo buraco onde só um de cada vez, conseguira entrar.

A minha Secção era chamada de "Armas Pesadas" e distribuídos nos foram, por isso, também três morteiros 60, que pesavam mesmo e bem o sentíamos quando os levávamos a tiracolo e nos deslocávamos durante os passeios pedestres através da agreste selva rural, assim estilo rally paper pedonal. E nem sequer levávamos, quer o prato base quer o regulador de distâncias destinado a observar para que a coisa acertasse. Considerávamos que eram apetrechos incomodativos assim mais... mariquices desnecessárias, pois que e disparados a olho nu, não falhavam e nem daquela vez em que um resolveu fugir e desaparecer, mas antes disparou, expeliu e acertou.

E deu-se porque ao sermos recebidos por intenso fogo d'artifício, ali junto à bolanha do Biribão, nós... pumba lá vai disto... mas mesmo utilizando o costumado capacete por baixo, o gajo quando lhe tocaram no percutor, afundou-se e pronto. Guardo religiosamente a chave de fendas com que substituía tal peça ao fim de quatro bojardas enviadas. Desertou? está desertado... mas também fomos culpados, dado que já acontecera com outros... na lama não se disparam tais armas... mas aquela ânsia de corresponder foi fatal.

Aquando da chegada das colunas que nos traziam os mantimentos e até o material de guerra, cabia às Companhias de destino, fazer a segurança das suas áreas e nos percursos de passagem das viaturas. Para tal, emboscava-se e patrulhava-se a fim de que o terreno ficasse desminado e preparava-se tudo nos locais mais perversos e onde já antes tinha havido problemas, para que desta vez não se materializassem. Naquele dia coube ao meu pelotão a preparação da coisa, na estrada que ligava a Bironque. Incumbido disso fui, o que fiz naturalmente, considerando os conhecimentos antes adquiridos e por via do treino que superiormente me fora ministrado ao vivo pelos " ÁGUIAS NEGRAS " de Mansabá e de Bissorã.

Minucioso saiu na escrita, só que no terreno, nada seria igual pois que a rapaziada borrifava-se, não descurando contudo, as seguranças próprias e do grupo mas lá, onde era importante, as ordens emanadas pelos superiores sempre foram cumpridas com coragem e lealdade absolutas. E foi assim, que a excursão nocturna lá partiu, organizadamente desorganizada, uns fumando para que o IN se por aí estivesse, pensasse que eram gambozinos ou pirilampos a faiscar, outros praguejando com a maldita sorte da escolha logo neste dia com tanta chuva, outros ainda maldizendo a empecilhosa lama escorregadia e as botas rotas por baixo e tudo em alta voz como convinha. 

Só que esta destemida juventude já veterana e ao primeiro sinal de alerta, tornava-se num exército disciplinado, aguerrido e cumpridor e se antes pareciam putos reguilas, então eram uns valentes combatentes, antes incapazes de fazer mal, mas depois era o "cá se fazem cá se pagam". Chegados, indiquei-lhes os "leitos" a ocupar o que não seria necessário, que já conheciam bem o esquema, mas pronto... gostavam de ouvir a minha palavra amiga...e aquele toque positivo da palmada no ombro. Para mim escolhera o primeiro lugar donde esperaria que surgissem os problemas, se tudo acontecesse como anteriormente.

A noite ainda se não fizera dia, a chuva continuava mais qu'a muita, a trovoada ribombava assustadoramente, mas o solo molhado e fofo, recebeu-nos carinhosamente. Silêncio absoluto agora, olhos mais que bem abertos, dedos engatilhados e assim se passaram quase duas horas. Já lusco-fusco, começo a ouvir e ali bem perto de mim, o ruído sereno, como o de que alguém viesse a rastejar ao meu encontro. Em alerta máximo fiquei e dei conta da situação aos camaradas do lado. Dois ou três minutos de hiper-tensão depois, aparece-me ali a três metros, uma cabecinha a espreitar e quase disparei. Ela olhou-me, eu olhei-a e creio que foi amor à primeira vista, pelo menos da minha parte nunca mais esqueci aquela que me enfeitiçou pra sempre. Nisto e num saracotear e manso rastejo, ela mirou-me longamente, despediu-se tristonha e com uma lágrima ao canto do olho, que bem na vi, saída daqueles formosos olhos azuis, mostrou-se-me tal como viera ao Mundo e lá foi suavemente atravessando para o outro lado.

Garanto-vos que eram pr'ái 5 ou 6 metros de belíssima cobra. Relembrei-a noutro dia em que e sem querer pisei, indo no jeep, uma qu'até me fez saltar para o chão com o dito em movimento, julgando eu estar a ser submetido a qualquer vil tiroteio ou ter atropelado alguma minazita mal intencionada, pois que o rebentamento fora idêntico. Entretanto lá longe, começava-se a ouvir o roncar das viaturas o que significava que desta vez conseguíramos o objectivo. Então o Cmdt do pelotão que levava o rádio, mas nem usá-lo sabia, tentou o contacto: "Alô, alô...aqui eu...diga se me escuta... ôvo".

Trocou os verbos, pronunciou mal os tempos, mas foi útil para uma saudável risota de descontracção e a ordem veio para abandonarmos o local e recolher ao K3. Como na ida, regressámos "todos ao molho e fé em Deus" e em alegre cavaqueira com a patrulha pedonal, que andara a fiscalizar no vai-vem costumado e constante. Missão cumprida portanto, tomámos o petit-dejeuner que para quem não sabe quer dizer " o café da manhã". Foi-nos dado o resto do dia para descansarmos, o que calhou mesmo bem para pôr a escrita em dia: Saudades PAI, Saudades MÃE. BEIJINHOS E ABRAÇOS PARA TODOS OS RESTANTES FAMILIARES.
(PS: de vez em quando sinto esta necessidade de vos mostrar que também sou culto e daí aquelas duas palavritas em inglês).

Naquela tarde, fui empossado num novo cargo sem remuneração, para quando estivesse com algum tempo disponível, ou seja, "começas amanhã". Chamado havia sido ao resort dos Senhores Oficiais e como era o dia dos meus anos, pensei que me preparavam uma festinha comemorativa e que triste fiquei porque afinal nenhum se havia lembrado do facto, ao contrário dos meus amigos da Secção de Morteiros 60, com quem partilhei o figadal almoço, tendo ainda estado presentes mais alguns camaradas disponíveis. Impunham-me sim, mais sub-humanas tarefas, mas compreendi, após os factos explanados, que de facto não haveria mais ninguém com as superiores e sábias condições para o fazer. E assim, fui incumbido pelo Sr. Capitão Cmdt da Companhia, de ser o desenhador-arquitecto-engenheiro, para construir as instalações onde acabaram por ser o restaurante do K3 e anexos, ou melhor dizendo, a cozinha e refeitório.

Que seja... se tem de ser... vamos nessa... amo desafios propostos à minha sobre dotada inteligência. E porquê eu? devido ao facto de saber o que era um tijolo? o cimento? a areia e até as pedras? (mas com essas não poderia contar porque ali em Saliquinhedim não havia uma sequer que fosse). Dispus-me e elaborei um majestoso plano qu'até me admirou a mim próprio. Para numa mais eficiente, rápida e assaz sei lá o quê, ousei suplantar as técnicas em vigor, decidindo começar pelo telhado em vez de pelas paredes que o aguentariam e dado que se aproximava a época das chuvas, estaríamos pelo menos abrigados.
Mas então... disse o arquitecto vaidoso: É pá, começa pelos caboucos e pranta lá os alicerces. 

Pensei... pensei... pensei, o que me fez uma bruta dor de cabeça e vendo que até era capaz de resultar, pus mãos à obra. Criei então, uma equipe de malta que não pudesse discutir as minhas ideias, ou seja... aboli à partida todos aqueles que percebessem da arte de pedreiro, pois gosto pouco de ser criticado e sabia que qualquer obra prima, mesmo bela e útil, tem sempre detractores. A coisa lá se foi fazendo, fio de prumo também não tínhamos, íamos resolvendo a olho nu, e por isso é que as paredes do edifício surgiram sem simetria, qu'é assim como dizer, que deveriam estar direitas de baixo para cima e nunca ao contrário. Ficaram mais ou menos, mas sólidas... Depois disso, deram-me então razão na questão do telhado só que e porque deveria ser instalado lá no alto, estava ali uma carga extra de trabalhos, mas fez-se com cibes.

Mandei também fazer duas portas, uma para a entrada e outra para a saída e vice versa e mais quatro janelas, duas maiores viradas para a mata para fazer ciúmes aos inimigos e as outras duas não. In's que sabíamos nos estariam a bispar cheios de fome, coitados. Numa dessas, a 1ª a seguir à porta de saída, desenhei-a propositadamente a fim de despejar todos os despojos sobrantes, que alimentariam os abutres.
E assim se completou a obra.
(continua)


Veríssimo Ferreira (2015)



Publicado por
Manuel Resende (Ferreira)



27 de dezembro de 2015

Post Nº 56 - Textos de Veríssimo (7)

Veríssimo Luz Ferreira
Furr. Mil. da CCAÇ 1422 - Pelundo














OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

(continuação)
E VAI DAÍ:
(passagem por Jolmete)

Até que certo dia m'aparece o meu Cmdt de Companhia (Sr. Capitão Dinis Côrte-Real)... mais o Alferes Simões, o 2º Sargento do quadro Nuno e dois Fur's-Mil, Gualter e Higino e é-me dada a ordem: Vem daí connosco que também foste convidado para os festejos em Jolmete. Fui... nem discuti, mas sem saber da importância de tal decisão. É que graças a mim foi repudiado o 1º ataque ao aquartelamento (ao que julgo saber). Chegámos... o cheiro a comes era mais qu'a muito e noite quase a chegar. E quando nos dispunha-mos a papar: Começou a fogaracha inimiga e lá se foi o objectivo em causa ou sejam: as fracas assadinhas na brasa, temperadas que foram com jindungo... Os borreguitos... Os porquinhos... 

Recapitulemos: "Pela 1ª vez, o quartel é atacado..." 
Organizei-me, procurei a arma adequada para responder a tal situação e lá descobri o meu caro morteiro 60 e um cunhete com 6 poderosas granadas. Fiz o reconhecimento da zona para onde as enviaria acompanhadas que seriam com os meus cumprimentos, raiva e votos de festas felizes e aí vão elas, uma de cada vez claro. Não deviam ter conhecimento da letalidade da coisa... acabaram com a flagelação... e ouviram-se gritos de foge... foge. Em boa verdade, até eu fiquei deslumbrado com tanta luz. É que as granadas atrás citadas, em vez de explosivas, saíram iluminantes, mas que os fez tremer e "cavar", lá isso fez. Ainda hoje não devem ter percebido, porque foi que a negra noite, se transformou num ápice, em luminoso dia.

Tínhamos um ligeiro ferido nas nossa hostes, que apanhara de raspão, com uma bala no... na anca, o que lhe causava algumas dores. Não havendo enfermeiro, fiz disso, e após informação conseguida pelo ANGRC9 administrei-lhe uma injecção de morfina. Daí que cinco minutos depois, o Fur. Mil. Indy (assim se chamava) quis iniciar uma perseguição na mata, para se vingar; o guarda-costas do Capitão Corte-Real, "guardava-o" pondo-lhe à frente uma mesa de madeira porque nada mais por ali havia para o fazer. Eu? Assei uns "xóriços", bebi uns tintos em copo de alumínio e por aí me fiquei qu'o Vat 69 fora atingido e vertera no chão vermelho. 
Saímos dali logo que amanheceu, picámos a estrada, levei as minhas tralhas do Pelundo, reagrupámo-nos e lá partimos finalmente, para tomar posse do K3, que já estava quase concluído se é que podemos dizer "concluído", ao facto de os abrigos, estarem prontos pelos quatro cantos e onde coube a minha CCAÇ 1422, "oficiais e tudo".

Coluna organizada e à frente, a Daimler (piolho lhe chamavam), uma auto-metralhadora semi-blindada, que foi disparando para a mata, durante a viagem e mais propriamente junto aos locais onde já antes houveram existido emboscadas ou flagelações. Tinha no exterior um morteiro 60 e um banco acoplados pela rapaziada engenhosa das "mecânicas auto" e logicamente que era ali necessária, quando em viagem, a permanência dum elemento que soubesse trabalhar com o referido morteiro. Encomendaram-me a missão e já que ali teria de ir, sentado em poltrona d'aço verde, pelo menos seria o pioneiro de duas coisas: 1ª - ou a enfrentar o inimigo e levar um balázio nas trombas; 2ª - ou no destino, receber as honras de primeiro a chegar.

Subi para o poiso. Passados que foram dois ou três Kms, começou-se-me a vir à memória a minha santa terrinha e o Conjunto musical "Sôr-Ritmo", pois então. (Tinham lá um vocalista fora de série, um tal de Veríssimo Ferreira, que encantava e deliciava as jovens d'então e também as suas próprias respectivas mães. E vai daí... atento venerador e obrigado a ir ali exposto e sem defesa possível, e talvez até devido ao Vallium 69, qu'antes emborcara, começou a trautear, uma coladera que aprendera a dançar há dias, no Pelundo, só que às tantas, entusiasmou-se, e lá foi em alta voz a "Nha Bolanha". Avisado foi ao que soube mais tarde, para se calar, mas com aquela barulheira de tantas viaturas, nada ouviu e continuou).

Chegámos sem problemas, caso único e nunca mais repetido, mas ficou-me sempre a mágoa do não saber porquê de não nos honrarem com qualquer ataque, ou ao menos ter sido accionada uma mina nem que pessoal fosse. E fui observar o hotel. O abrigo que me fora destinada estava nos conformes. Descíamos quatro degraus, depois mais cinco para a esquerda e ali estava a suite. Embora na época das chuvas, o chão ladrilhado de terra encarniçada, tinha já dez ou mais centímetros d'água, o que era porreiro mesmo e propício à propagação da matacanha, bichinho comichoso , como sabem. Os locais para dormir eram dez, dispostos em cinco grupos de beliches. Fizeram-se as escolhas e a mim tocou-me o último em cima, mas com visibilidade para a seteira do abrigo o que era óptimo pois que assim até poderia reagir, deitado. Ali mesmo ao lado, em baixo, ficavam as valas que nos levavam de gatas, ao local donde dispararíamos as armas pesadas, se atacados. Visitei o bar... ai nanas... jantei duas sandes de pão com pão, levei mais dez e também sagres de seis dcl para os meus. Enquanto petiscávamos chegaram as boas-vindas inimigas e tal como chegaram partiram, após, claro, termos correspondido.

Iniciámos então a pacificação da zona emboscando; patrulhando; escoltando; vigiando; descansando. Pela matina o "barman" preparava um “petit dejeuner” daqueles de se lhe tirar o bivaque e que consistia em bocadinhos de pão, ainda não em pedra mas quase, a que juntava ovos inteiros, sem casca, claro, mais umas sagres pretas e açúcar. Tudo misturado era um acepipe que deslizava suave e gulosamente pelos nossos sequiosos gorgomilos. Até ao almoço, ficávamos "porreiros mesmo pá". Este (o almoço) era óptimo e variado quanto baste: às 2ªs, 4ªs e 6ªs: dobrada liofilizada com feijão branco; às 3ªs, 5ªs, Sab e Dom: feijão branco com dobrada liofilizada. De quando em vez, porém, comíamos uns bifitos de vaca tuberculosa, que comprávamos, sem falar com os donos, por ali nos matos próximos, mas raramente, pois que o perigo também lá morava. A maior carência tinha que ver com o ingerir "frescos", nome que davam aos produtos hortícolas. Raramente chegavam lá ao fim da linha, já que antes passavam por vários "esfomeados", distribuídos desde Bissau, até nós.

Compensávamos tal falta, em Farim e aquando do aprovisionamento diário da água para uso da Companhia, abastecendo-nos então com os necessários colesteróis substitutos com vantagens das vitaminas e proteínas. Por fim e com a barriguita quase aconchegada e já do lado de lá do rio, atirávamos (DE PÉ) uma granada (DE MÃO), a fim de afugentar algum empecilhoso crocodilo dundee, que por ali andasse e tomávamos uma banhoca, coisa recomendável e saudável, dado o volume da comida... bebida. A tarde era destinada a algum descanso para que à noite pudéssemos aparecer, aos habituais encontros, com alguma compostura e pontaria afinadas, não sem que antes se houvessem limpo as maquinetas G3 e até nisso tive azar que a minha tinha mais um bocadinho para polir, pois era de bipé.

Mas nem tudo foi menos feliz e "tocaram-me" as lotarias várias vezes, como naquela em que, indo nós (a minha secção) a fazer um patrulhamento pelo circuito pedonal e até aos "carreiros" ( a 3 Km do quartel, estrada para Mansabá) local onde os mariolas costumavam "semear" minas, porque sabiam quando por ali iriam passar os reabastecimentos. Pois aconteceu, que fomos emboscados, apesar de que e como era costume, a progressão estivesse a ser feita bem e como mandam as regras. De lá, vieram uns tiritos para cá... e de cá também nada meigos fomos. É que não gostávamos mesmo... mesmo... que nos interrompessem enquanto trabalhávamos. Organizá-mo-nos depois em triângulo isósceles... avançámos selva dentro, e estávamos-lhes com uma sede !!!. Ficaram cientes que contra nós dez, a coisa chiava mais fino. 

A certa altura porém, caíram-me umas folhas de embondeiro na cabeça (um tronco passou ao lado), desmanchando-me o penteado à James Dean, com risco do lado direito e tudo. Irritei-me, tá visto, porque não gosto que me atirem coisas à cachimónia e olhei para cima. Entretanto mandei parar a festa, mas do outro lado, não me ouviram decerto e as folhas continuaram a cair. Estes gajos são recrutas, não respondam, disse. Rastejando, mato adentro lá debandaram gemendo. A minha teoria confirmou-se, pois que a cara dos "filhos duma mulher menos séria" estava desenhada no solo e enquanto isso fogueteavam para o ar, dando assim início à destruição da floresta, poiso de tanto macacóide e de alguns jagudis, ali a viver.

Operação terminada, correra bem, continuámos... Às tantas segredam-me: ali à frente, devem estar à nossa espera, vi passar uns gajos e são mais de vinte... Estudada a nova situação, pensámos como resolver o conflito iminente... avançámos com redobrados cuidados e no sentido de os envolvermos numa teia donde não saíssem. Após quase uma hora para percorrer 300 metros, portanto tal aproximação estava a ser enquadrada como nas mais vitoriosas tácticas militares, antes usadas, eis senão quando, estabeleço finalmente contacto visual e SIM eram realmente mais de vinte. Para combatentes experimentados conhecedores do terreno, a coisa estava destinada a ser "canja", e dali não sairiam impunes. Último olhar que a neblina dissipava-se e vi que: ESTAVAM DESARMADOS. E porra... ERAM GORILAS. Daqueles bem grandes. Também me viram... continuaram a comer... E nós? Retirámos tristes pelo falhanço do que esperávamos ter sido "manga de chocolate", mas com o sentimento do dever cumprido.

Naquele dia e a emboscar mais uma vez no local "carreiros", ouviu-se um zurrar. Aqui nesta zona do K3, nunca tal houvera visto, embora conhecesse, um ou outro, mas de duas patas. Acomodá-mo-nos melhor, uns atrás das baga-bagas, outros atrás das vetustas árvores, outros ainda deitados na camuflagem natural da selva. O dedo permanecia no pinchavelho, ou seja, naquela coisa que na G3 faz accionar a saída pelo cano, duma pecita que ao encontrar algo, derruba que se farta. Pedi que ao verem o asno, o deixassem para mim, experimentado que era em engatá-los na nora do meu sogro que também era o proprietário duma mula bem vistosa. 

Passado pouco tempo, lá chegaram aqueles por quem amigavelmente esperáramos para uma aterradora surpresazinha e para lhes cantar também os parabéns. Vinham descontraídos... conversando... alegres e bem dispostos... não antevendo, ingénuos, que também sabíamos preparar recepções. A tiracolo traziam, a meu ver e depois confirmei, armas proibidas e para as quais não tinham a necessária e indispensável licença para uso e porte. No final da fila em pirilau, que o caminho era estreito, lá vinha o jumento, que tanta alegria me viria a dar mais tarde.

Tadinho... vinha carregado que "nem um burro", trazendo num dos lados do lombo... espingardões e do outro lado um canhão sem recuo. Tudo, sem sela nem canga. Imaginei o sofrimento do pobre e pensei: quais selvagens, tratam assim as bestas ??? Hora da festa... faça-se a festa... e fez-se. Manga de ronco... mesmo... e só tarde se aperceberam do que lhes estava a acontecer. Regressámos depois a penates e de livre vontade, acompanhou-nos com arreata o prisioneiro que ia entrementes fazendo uma alarvice de zurraria do caraças... Interrogado foi mas nada confessou.
(continua)




Veríssimo Ferreira (2015)




Pulicado por
Manuel Resende (Ferreira)