Veríssimo Luz Ferreira
Fur. Mil. da CCAÇ 1422 -
Pelundo
OS MELHORES 40 MESES DA MINHA
VIDA
(continuação)
E VAI DAÍ:
Março de 1966 e nove meses de
comissão completados. A continuar
assim regressaremos à Metrópole passados que sejam outros onze. A construção da cozinha estava quase, mas não foi
fácil, qu'os catarpiladores inimigos tentaram destruír tudo à noite e a tiro.
Só que mais teimosos que nós não eram e a obra acabou por ser feita, também e
porque, entretanto, lhes arrasámos o bunker privilegiado que usavam para o
derrube... Estava em local quase impossível de detectar e a ninguém passou pela
cabeça que ali fosse. Descobriu-o acidentalmente, um dos nossos, comedor (e eu comparsa) incansável
de pombos verdes e coelhos, que, caçando certo dia, junto às exteriores redes
de arame farpado (e eram três devidamente adornadas com garrafas vazias e que provocavam
o efeito de sineta, aquando dalguma invasão se a houvesse e houve, sendo que na
maioria das vezes, menos duas, eram macacos distraídos,) "um dos nossos"
repito, apercebeu-se que um dos maus, entrava para um embondeiro.
Irreal nos pareceu, logicamente, mas para que o diabo as não tecesse, fomos confirmar e lá estava a árvore... escarafunchada... oca o suficiente para que coubesse um marmanjola e até tinha dois buracos, estilo binóculo, virados para o aquartelamento. Esclarecido ficava assim, o porquê de que sempre que saíamos por aquele lado, nos mandavam com alguma desalmada e mal intencionada fogaracha. Reunimos a equipe das demolições da Companhia, consultámos os nossos mais que maquiavélicos especialistas em desratização, capazes de acertar em qualquer melga a cem metros, planeámos o que havia a planear e pós cinco demorados minutos de intenso debate, foi escolhido o momento certo para a operação, existindo unanimidade da certeza que só avançaria quando tivéssemos a prova, que o voyeur estava mesmo mirando.
Numa espera, cuidadosamente secreta, resultou que no dia seguinte nos informam através do telemóvel ANGRC9, que um individuo cujo respectivo, entrara e que não estava só. Três outros, armados até aos dentes, acompanhavam-no, o que nos levou a nós "os cérebros" a supor que, sendo quatro iriam jogar uma suecada. Feito o conveniente rastreio de aproximação, a fim de lhes enviarmos as duas preparadas epidurais... estas lá foram... quase em simultâneo... após a breve ordem de "vai". E mais uma vez, aquelas, pintalgadas de verde-militar bazookas, não falharam, também graças àqueles utilizadores de mãos de ouro, assaz experimentados. O parto, ou melhor, o partir (do embondeiro) envolto em pó qual pulverização sheltoxkiana, estava concluído.
É provável que tenhamos interrompido a jogatana em curso, porque ao visitarmos, posteriormente, o sítio, encontrámos muitos e variagados vestígios, não só de cabidela, como também o chão, estava vermelho, e mais ainda... cartas dum baralho interrompido e dois ases de paus, o que nos levou a concluir, que um dos quatro intervenientes, era, mesmo, um grande batoteiro. O meu amigo felupe, o 44, propôs-se a tirar-me uma arreliadora matacanha. Devidamente desinfectado tinha já um afiado alfinete de dama... sentou-se de frente a mim, pegou-me nos pézinhos tamanho do sapato 43, e olhou-os assim estilo quando miro aqueles de coentrada. Eu entretinha-me a tomar Cavalo Branco. Tira lá isso sem me magoares, que bebes a seguir... Bebeu após me apresentar aquela bolha cheia de bichinhos lá dentro, fazendo lembrar os cachos de chocos a nascer, que se vêem nas praias.
Este rapaz, de quem fui muito amigo e ele meu
também, mereceu-me toda a atenção e dediquei-lhe algum do meu tempo disponível.
Fazia perguntas e queria saber mais... ele fosse
sobre o nosso modo de viver em Portugal... os costumes, os usos... o
significado de palavras e custava-lhe acreditar que o Mundo fosse da forma como
eu lho descrevia. No fundo, o meu Mundo
também só era o Alentejo do Alto e foi presunção querer Alentejanizá-lo.
Divertia-se quando lhe expliquei que comíamos o
porco de várias maneiras o que de todo ele repudiava com o "bé" que
suponho ser assim uma espécie de "porra". Ensinei-o a jogar dominó com umas peças com desenhos
de posições sexuais e ria, ria muito, o que também ainda hoje faço quando se
m'alembra a cena. Perguntou-me também
sobre os Deuses, sim que ele estranhava haver mais do que um.
Dentro do pouco que sabia sobre tal, lá lhe fui
explicando o possível. Falei-lhe de quando menino de escola, ter quase
obrigatoriamente que frequentar a igreja e saber até o Pai-Nosso, mas só até
àquele certo dia em que descobri que as senhas que recebia por ir à catequese e
com as quais me davam pelo Natal 125 g de manteiga, ou mais, dependendo do nº
de presenças, eram a forma de me cativarem para a religião, o que me desgostou.
E mais ainda... ao saber, que a manteiga vinha da América oferecida e para ser
distribuída pelos mais pobres, revoltei-me. Mas mais lhe disse: Contudo, não deixei de lá ir, mas ficando cá fora,
aquando da saída das missas e para ver, as miúdas. De qualquer forma, continuei, o teu a quem chamas Alá,
gosta mesmo de mim, e tanto tanto, qu'até te mandou criares porquinhos e não os
comer, qu'esse será crime a ser cometido por este teu amigo, já pecador
confesso.
Mas... o meu deixa as mulheres andarem nuas da
cintura pra cima e o teu obriga-te a despir as da tua raça... e enquanto assim
falava, lá punha de novo a bocarra escancarada, com a dentuça branca toda à
vista e batendo ruidosamente os pés no chão barrento. Ganhaste malandro, pensei...mas deixa que havemos de
voltar ao assunto, grande amizade ficou
entre nós e para além disso foi óptimo colaborador militar da CCAÇ 1422, pois
que sendo conhecedor do terreno que nos competia gerir ali no K3, foi um
excelente guia para além de também e disfarçadamente houvesse sido meu
segurança particular: "
"Não se cheguem ao "nôsso furié" que têm de se haver comigo, parecia ele dizer olhando para a mata". O sonho dele era poder vir a "conduzir" aviões e helicópteros e fez-me vários pedidos para que eu intercedesse nesse sentido. Na verdade e sem saber como lhe responder sem o magoar, adiei a questão até que um dia lá consegui dizer-lhe a verdade e em contrapartida convidei-o para ir aprender primeiro a "pilotar" a GMC que costumava ir à frente quando em coluna, íamos recolher os abastecimentos no caminho esburacado que nos ligava a Mansabá.
"Não se cheguem ao "nôsso furié" que têm de se haver comigo, parecia ele dizer olhando para a mata". O sonho dele era poder vir a "conduzir" aviões e helicópteros e fez-me vários pedidos para que eu intercedesse nesse sentido. Na verdade e sem saber como lhe responder sem o magoar, adiei a questão até que um dia lá consegui dizer-lhe a verdade e em contrapartida convidei-o para ir aprender primeiro a "pilotar" a GMC que costumava ir à frente quando em coluna, íamos recolher os abastecimentos no caminho esburacado que nos ligava a Mansabá.
Para tal tive a permissão superior, embora um
senhor alferes se tenha mostrado contra, argumentando que ele poderia desertar
e levar-nos a viatura. Nem estava mal pensado, mas dada a conduta do rapaz e
conhecendo as famílias, lá se procedeu conforme o meu pedido e era vê-lo todo
vaidoso e já encartado, ao volante do Unimog da água. Conheci-lhe a família toda na sua tabanca em Farim.
Partilhámos bianda e galinha de chabéu preparada pela sua mais bela mulher, a
Fátima e não gostei mas tive de aceitar muito honrado, que pusesse o meu nome
num dos filhos que houvera nascido. Em Abril de 66, julgo eu, e porque o
vagomestre iria a Bissau, para consultas
médicas, foi-me ordenada colaboração, (conhecida que era a minha fama por muito comer e melhor beber), no sentido
de criar outras e melhores alimentações a fornecer
aos 150 elementos que constituíam a Companhia.
Aceitei o desafio e com a tesouraria disponível
fez-se. Para já o menú habitual (a tal
dobrada) passaria só a ser disponibilizada 5 dias por semana, porque ao Sábado
propus-me apresentar um prato novo e fiz o que ficou conhecido por
"varrasco à K3". E ao Domingo, "restos à Brás", aliás,
prato baseado no bacalhau à dito, só que não havendo este, aproveitava os
sobejos do dia anterior, desossavam-se, misturava umas batatitas finas, mais uns
ovos e enfim... comia-se e que me lembre nunca sobrou. A questão principal, punha-se mais, em como e onde
arranjar porcos para tanta gente, o que
entretanto se resolveu com a preciosa ajuda do condutor do jeep que me acompanhou às compras em Farim.
Ele tinha uma lábia fora de série, até falava (inventava) quaisquer dos
dialectos, ele até era palhaço de circo na
vida civil e facilmente convencia o povo das tabancas dali dos arredores.
Nem sempre, foi assim tão elementar mas lá dava a
volta. Na 1ª semana tudo correu bem e com 50
pesos comprava um bísaro, mas logo na 2ª pôs-se a questão dos inflacionados
preços que nos exigiam. É que aumentaram o produto para o dobro. Por proposta que aceitei, foi-me dito claramente:
meu furriel, deixe o assunto comigo, hoje faço as
compras sozinho, vá cumprimentar os amigos
que eu resolvo a dificuldade e vai ver que não nos faltarão provisões porcinas,
durante mais uns tempos. Tenho influências aqui na população e resolverei isto
a nosso contento, não gastando mais e recebendo a mesma quantidade. Lá foi... e lá voltou e trouxe a mercadoria em
causa e durante mais duas semanas nada faltou.
Claro que, mais tarde procurei saber como fora
possível que o camarada condutor tenha dado
a volta aos vendedores e questionei-o. Recusou-se ao princípio mas lá acabou por me revelar a arte posta na
negociação e que ele bem sabia que
aquisições, como e da forma que as fez, não teriam
a minha concordância e daí ter-me procurado manter afastado. Então foi assim, confessou: O que aconteceu é que antes das mercas efectuadas, dei
umas voltas, fiz umas manobras de risco,
como se em rally andasse, dei umas trancadas,
passei por cima dum e ficou-se logo, parti as pernas aos outros dois, de forma que e quando me pediram 100, eu
lhes tenha dito: “É pá 100, se estivesse
vivo pagava, mas assim já morto e aleijado só dou 50."
(continua)
(continua)
Veríssimo Ferreira (2015)
Publicado por
Manuel Resende (Ferreira)