11 de janeiro de 2016

Post Nº 59 - Textos de Veríssimo (10)

Veríssimo Luz Ferreira
Fur. Mil. da CCAÇ 1422 - Pelundo













OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

(continuação)
E VAI DAÍ:
Entrementes em meados de Abril, é-me concedida uma licença de 5 dias a fim de "tirar a carta de condução" em Bissau. Lá cheguei... eram duas da tarde, almocei na Pensão onde me hospedei, ali perto do Liceu e fui dormir a sesta. Jantei depois um bruto bife com molhança picante e bem acompanhado por um tinto... mais sobremesa, whisky e café. De seguida, fui dar um passeio pela cidade. Ali no largo onde se situava o Palácio do Governador e numa esquina da rua que vai para o Hospital e segue para Brá e por aí fora, parei no Café Portugal para novo mata-bicho e dou de caras com um amigo do meu "povo", piloto das FAP. Abraços para cá e para lá, conversámos sobre isto e mais aquilo, e dispôs-se a levar notícias e saudades minhas, à família, o que agradeci.

Só que às tantas diz: Ó pá porque não vens connosco que t'arranjo um lugar no Skymaster? Partimos depois de amanhã. Ai qu'este gajo está tonto.... pensei, mas a ideia começou a toldar-me o espírito... a fervilhar... e a fervilhar cada vez mais e mais... e disse: Porque não? que terei de fazer? como resolver isto? será que? OU SERÁ QUE? Por sorte e por pesquisas encetadas por nós dois, soubemos que o meu Comandante de Batalhão, chegara de Catió e estava por acaso no QG, que nem longe dali era. E fomos lá e consegui contactá-lo e prometeu assinar tudo a autorizar se "o teu Comandante de Companhia nada tiver contra". Contacta-o... ele que me ligue e amanhã à tarde, passa por cá. Através dos rádios militares foi conseguida a ligação e na tarde seguinte, lá estava eu de novo, cheio de continências e esperanças... e lá recebi os papéis... passaportes... vacinas e mais ainda, com os votos de Boa Viagem e "goza rapaz" mas volta daqui a 30 dias e fica sabendo: "estás bem visto pelo teu Capitão".

INCRÍVEL, mas verdadeiro e no outro dia, ao nascer daquele bonito sol, levantámos voo e em boa verdade só me convenci que não sonhava quando parámos nas Canárias, devido a avaria num dos motores do avião o que e como soube só 30 anos depois, era hábito acontecer. Foram 4 dias magníficos que ali passei, comprei uma Canon, um gravador e um rádio portátil da Sony e hospedado estive como convidado, nas instalações militares espanholas do aeroporto, até que e reparada (?) a coisa, nos fizemos rumo a Portugal e era já noite quando chegámos, tendo apenas como único transporte para sair dali, rumo à santa terrinha um tal de comboio correio que demorou 8 horas a chegar em vez das duas e meia habituais.

Alô K3: Apresenta-se o Senhor Fur. Mil. que "desertou" daqui há 35 dias, para ir a Bissau tirar as cartas de condução de veículos ligeiros, pesados e motos e que acabou por andar a engonhar no bem-bom da Metrópole, devido a causas e artes mágicas. Trago, para paparmos juntos, uns chóriços lá do porco dum meu parente, bem como uns paínhos do lombo do mesmo animal. Nisto ouve-se uma voz vinda lá do fundo: "Calha bem qu'o lume está aceso". Era dum dos homens da minha Secção, experimentado nos temperos com que besuntava as distraídas cabras do mato que ultimamente e por vezes, se deixavam apanhar por ali e que melhor ainda, untava os pombos verdes que derrubava com a pressão d'ar.

Outros foram chegando para me dar as boas-vindas, atraídos que foram, pelo agradável cheirinho do grelhado e assim se consumiram os vinte quilos do bom enchido de fumeiro e dois garrafões de catorze litros do tinto ali estacionado para consumo interno, para além das bastas cervejolas das grandes. Pela matina, ergui-me ainda lusco-fusco e fui prestar vassalagem ao aquartelamento e mirar as novidades: A cozinha estava já com as paredes caiadas e na parte virada para o exterior, onde havia sido construído um muro, um metro para fora e cheio com terra, a fim de resistir às investidas do espingardum inimigo. O tecto perfeito.

Também tínhamos agora, um gerador para fornecer luz a quatro potentes holofotes, colocados um a cada canto do recinto, luz essa que só seria ligada quando das visitas habituais nocturnas. A ideia era proporcionar aos manganões, uma melhor visão aquando da fuga rápida, que costumavam iniciar logo que os cumprimentávamos de acordo com as mais elementares regras da boa educação. Dentro ainda daquele espírito bondoso, que nos animava queríamos que não tropeçassem no escuro e, que se não aleijassem ou partissem alguma perna, coitados. Além, junto à via rápida para Mansabá, perto da porta d'armas, fora criado um mini-zoo e construído um tanque onde boiava um metro de crocodilo, que fazia a alegria da rapaziada e também eu colaborei com alguns restos do leite condensado matinal, que comia às colheres, em vez do misturar com água, coisa que ainda hoje pouco   consumo porque líquido sensaborão e com cheiro a lixívia. Uso apenas para lavagens.

Ao lado, fizera-se uma horta onde despontavam alfaces, couves e cenouras. Os resultados finais foram negativos, porque e a meu ver, especialista que fui em nabos e na produção de tomates, o terreno era ensopado pelas águas do Cacheu e estas traziam resquícios de sal marinho. À volta do hotel e para lá das redes do arame farpado, a área capinada fora aumentada e as vistas estavam soberbas. Pena que os passeios a rodear as suites, continuavam feitos lamaçal e mais ainda agora, graças à bendita chuva de quentes águas, própria da época iniciada e que durará até lá para Oitembro, mas que me permitirá tomar grandes banhos ao ar livre, comungando com a natureza e utilizando o Lifebuoy, que ainda uso, salvo um dia antes de ir ao barbeiro, pois que ele costumava dizer-me: "a sua cabeça cheira a cão". E pronto, despeço-me até "ao meu regresso".


K3, Maio de 1966. Aquela manhã nascera chuvosa, tal e qual estivera a noite que passei deitado na mata emboscando. Chegara há pouco ao bedroom, dormira uma hora, mas ergui-me do leito e os pés ficaram logo em água, que por acaso ainda não molhava o colchão de suaves penas. Peguei nos chinelos de Macau, usados habitualmente nos pés... pois então. Trouxe-os na mão porém e até à saída da suite, vim devagar e lentamente para não acordar a minha Secção de Morteiros 60. Cinco metros e trinta depois e já na rua propriamente dita, escorreguei e lá ficou a gabardine com que dormira, cheia de avermelhada lama.

Ia para bater à porta do bar, após ter descido dez degraus, só que estava já aberta e afinal eu não era o único madrugador. Lá fora notava-se a rapaziada acordando, qu'o novo dia surgia. Hoje estava eu de serviço à água, que é como quem diz, lá iria com mais oito ou nove voluntários escolhidos, até Farim, de Unimog repleto de bidons, garrafões e tudo o que mais houvesse, para os encher na fonte. Até nem era uma operação difícil, pois que enquanto isso, aproveitávamos para nos revezarmos e para ali mesmo ao lado petiscarmos. Cada qual levava alguns dos poucos morfes sobrantes ainda da remessa que familiares enviaram e para além disso, o taberneiro libanês também vendia alguns razoáveis produtos para as, comezaina e bebezaina. A tarefa da recolha aquifera terminava três viagens após o início, o que resultava mais ou menos até aí pró meio-dia, hora mesmo boa para deglutir o almoço. A distancia do aquartelamento até à jangada que nos passava para a banda di lá, era precisamente de três Km's (daí o nome K3)... a estrada com mais do que menos buracos... tudo capinado à volta... vistas largas.

A rapaziada ia ao rio banhar-se e pescar. Banhar-se mas só depois de atirar uma ou duas granadas para afugentar os enormes crocodilos que por ali andavam e que eram o sustento de especializados caçadores. Vendiam a carne e o bife tenrinho. Negociavam também a pele do monstro, depois de seca. O Higino Arrozeiro, queria ir para França, logo após o cumprimento do dever na Guiné a fim de poder melhor ajudar a sua mãe viúva, com quem vivia e daí o ter-me pedido uma ajudita. Vamos nessa pá... tenho nisso muito gosto, vou mandar vir um livro de leitura e a gramática mas entretanto podemos já a ver os primórdios. Claro que estranhou (mas ia tomando notas) que o "au" se lesse "ô"... ; o "du"= "diú" ... ; o "en= â ... e o "ou"=" ú ". Chegaram entretanto da Metrópole os livros pedidos.

Por e devido ao facto de me ter sido dada a hipótese de ter ido passar umas férias, interrompemos mas deixei-lhe trabalho de casa para fazer. Sei que os fez que bem os vi, quando regressei, mas ele já cá não estava. Partira depois de a viatura em que seguia, ter pisado uma mina que o levou sabe-se lá para onde. Em Bissau voltei a encontrar o meu amigo, que jazia na capela do cemitério, a aguardar trasladação. Eu mesmo o meti no Niassa embrulhado que estava o caixão, em quatro tábuas, não sem que o tenha admoestado por ir daquela forma. Antes ainda ofereci-lhe com dedicatória... a gramática... o livro de leitura e os trabalhos de casa que ele fizera, e que não corrigi. E ali, no cais do Pigiguitti, cornetim amigo tocou o toque de Silêncio. E eu, em sentido, acompanhei-o assobiando... tremendo... até que o barco se diluiu no horizonte.
(Continua)

Veríssimo Ferreira (2015)



Publicado por
Manuel Resende (Ferreira)


6 de janeiro de 2016

Post Nº 58 - Textos de Veríssimo (9)

Veríssimo Luz Ferreira
Fur. Mil. da CCAÇ 1422 - Pelundo














OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

(continuação)
E VAI DAÍ:
Março de 1966 e nove meses de comissão completados. A continuar assim regressaremos à Metrópole passados que sejam outros onze. A construção da cozinha estava quase, mas não foi fácil, qu'os catarpiladores inimigos tentaram destruír tudo à noite e a tiro. Só que mais teimosos que nós não eram e a obra acabou por ser feita, também e porque, entretanto, lhes arrasámos o bunker privilegiado que usavam para o derrube... Estava em local quase impossível de detectar e a ninguém passou pela cabeça que ali fosse. Descobriu-o acidentalmente, um dos nossos, comedor (e eu comparsa) incansável de pombos verdes e coelhos, que, caçando certo dia, junto às exteriores redes de arame farpado (e eram três devidamente adornadas com garrafas vazias e que provocavam o efeito de sineta, aquando dalguma invasão se a houvesse e houve, sendo que na maioria das vezes, menos duas, eram macacos distraídos,) "um dos nossos" repito, apercebeu-se que um dos maus, entrava para um embondeiro.

Irreal nos pareceu, logicamente, mas para que o diabo as não tecesse, fomos confirmar e lá estava a árvore... escarafunchada... oca o suficiente para que coubesse um marmanjola e até tinha dois buracos, estilo binóculo, virados para o aquartelamento. Esclarecido ficava assim, o porquê de que sempre que saíamos por aquele lado, nos mandavam com alguma desalmada e mal intencionada fogaracha. Reunimos a equipe das demolições da Companhia, consultámos os nossos mais que maquiavélicos especialistas em desratização, capazes de acertar em qualquer melga a cem metros, planeámos o que havia a planear e pós cinco demorados minutos de intenso debate, foi escolhido o momento certo para a operação, existindo unanimidade da certeza que só avançaria quando tivéssemos a prova, que o voyeur estava mesmo mirando.

Numa espera, cuidadosamente secreta, resultou que no dia seguinte nos informam através do telemóvel ANGRC9, que um individuo cujo respectivo, entrara e que não estava só. Três outros, armados até aos dentes, acompanhavam-no, o que nos levou a nós "os cérebros" a supor que, sendo quatro iriam jogar uma suecada. Feito o conveniente rastreio de aproximação, a fim de lhes enviarmos as duas preparadas epidurais... estas lá  foram... quase em simultâneo... após a breve ordem de "vai". E mais uma vez, aquelas, pintalgadas de verde-militar bazookas, não falharam, também graças àqueles utilizadores de mãos de ouro, assaz experimentados. O parto, ou melhor, o partir (do embondeiro) envolto em pó qual pulverização sheltoxkiana, estava concluído.

É provável que tenhamos interrompido a jogatana em curso, porque ao visitarmos, posteriormente, o sítio, encontrámos muitos e variagados vestígios, não só de cabidela, como também o chão, estava vermelho, e mais ainda... cartas dum baralho interrompido e dois ases de paus, o que nos levou a concluir, que um dos quatro intervenientes, era, mesmo, um grande batoteiro. O meu amigo felupe, o 44, propôs-se a tirar-me uma arreliadora matacanha. Devidamente desinfectado tinha já um afiado alfinete de dama... sentou-se de frente a mim, pegou-me nos pézinhos tamanho do sapato 43, e olhou-os assim estilo quando miro aqueles de coentrada.
Eu entretinha-me a tomar Cavalo Branco. Tira lá isso sem me magoares, que bebes a seguir... Bebeu após me apresentar aquela bolha cheia de bichinhos lá dentro, fazendo lembrar os cachos de chocos a nascer, que se vêem nas praias.

Este rapaz, de quem fui muito amigo e ele meu também, mereceu-me toda a atenção e dediquei-lhe algum do meu tempo disponível. Fazia perguntas e queria saber mais... ele fosse sobre o nosso modo de viver em Portugal... os costumes, os usos... o significado de palavras e custava-lhe acreditar que o Mundo fosse da forma como eu lho descrevia. No fundo, o meu Mundo também só era o Alentejo do Alto e foi presunção querer Alentejanizá-lo. Divertia-se quando lhe expliquei que comíamos o porco de várias maneiras o que de todo ele repudiava com o "bé" que suponho ser assim uma espécie de "porra". Ensinei-o a jogar dominó com umas peças com desenhos de posições sexuais e ria, ria muito, o que também ainda hoje faço quando se m'alembra a cena. Perguntou-me também sobre os Deuses, sim que ele estranhava haver mais do que um.

Dentro do pouco que sabia sobre tal, lá lhe fui explicando o possível. Falei-lhe de quando menino de escola, ter quase obrigatoriamente que frequentar a igreja e saber até o Pai-Nosso, mas só até àquele certo dia em que descobri que as senhas que recebia por ir à catequese e com as quais me davam pelo Natal 125 g de manteiga, ou mais, dependendo do nº de presenças, eram a forma de me cativarem para a religião, o que me desgostou. E mais ainda... ao saber, que a manteiga vinha da América oferecida e para ser distribuída pelos mais pobres, revoltei-me. Mas mais lhe disse: Contudo, não deixei de lá ir, mas ficando cá fora, aquando da saída das missas e para ver, as miúdas. De qualquer forma, continuei, o teu a quem chamas Alá, gosta mesmo de mim, e tanto tanto, qu'até te mandou criares porquinhos e não os comer, qu'esse será crime a ser cometido por este teu amigo, já pecador confesso.

Mas... o meu deixa as mulheres andarem nuas da cintura pra cima e o teu obriga-te a despir as da tua raça... e enquanto assim falava, lá punha de novo a bocarra escancarada, com a dentuça branca toda à vista e batendo ruidosamente os pés no chão barrento. Ganhaste malandro, pensei...mas deixa que havemos de voltar ao assunto, grande amizade ficou entre nós e para além disso foi óptimo colaborador militar da CCAÇ 1422, pois que sendo conhecedor do terreno que nos competia gerir ali no K3, foi um excelente guia para além de também e disfarçadamente houvesse sido meu segurança particular: "
"Não se cheguem ao "nôsso furié" que têm de se haver comigo, parecia ele dizer olhando para a mata". O sonho dele era poder vir a "conduzir" aviões e helicópteros e fez-me vários pedidos para que eu intercedesse nesse sentido. Na verdade e sem saber como lhe responder sem o magoar, adiei a questão até que um dia lá consegui dizer-lhe a verdade e em contrapartida convidei-o para ir aprender primeiro a "pilotar" a GMC que costumava ir à frente quando em coluna, íamos recolher os abastecimentos no caminho esburacado que nos ligava a Mansabá.

Para tal tive a permissão superior, embora um senhor alferes se tenha mostrado contra, argumentando que ele poderia desertar e levar-nos a viatura. Nem estava mal pensado, mas dada a conduta do rapaz e conhecendo as famílias, lá se procedeu conforme o meu pedido e era vê-lo todo vaidoso e já encartado, ao volante do Unimog da água. Conheci-lhe a família toda na sua tabanca em Farim. Partilhámos bianda e galinha de chabéu preparada pela sua mais bela mulher, a Fátima e não gostei mas tive de aceitar muito honrado, que pusesse o meu nome num dos filhos que houvera nascido. Em Abril de 66, julgo eu, e porque o vagomestre iria a Bissau, para consultas médicas, foi-me ordenada colaboração, (conhecida que era a minha fama por muito comer e melhor beber), no sentido de criar outras e melhores alimentações a fornecer aos 150 elementos que constituíam a Companhia.

Aceitei o desafio e com a tesouraria disponível fez-se. Para já o menú habitual (a tal dobrada) passaria só a ser disponibilizada 5 dias por semana, porque ao Sábado propus-me apresentar um prato novo e fiz o que ficou conhecido por "varrasco à K3". E ao Domingo, "restos à Brás", aliás, prato baseado no bacalhau à dito, só que não havendo este, aproveitava os sobejos do dia anterior, desossavam-se, misturava umas batatitas finas, mais uns ovos e enfim... comia-se e que me lembre nunca sobrou. A questão principal, punha-se mais, em como e onde arranjar porcos para tanta gente, o que entretanto se resolveu com a preciosa ajuda do condutor do jeep que me acompanhou às compras em Farim. Ele tinha uma lábia fora de série, até falava (inventava) quaisquer dos dialectos, ele até era palhaço de circo na vida civil e facilmente convencia o povo das tabancas dali dos arredores.

Nem sempre, foi assim tão elementar mas lá dava a volta. Na 1ª semana tudo correu bem e com 50 pesos comprava um bísaro, mas logo na 2ª pôs-se a questão dos inflacionados preços que nos exigiam. É que aumentaram o produto para o dobro. Por proposta que aceitei, foi-me dito claramente: meu furriel, deixe o assunto comigo, hoje faço as compras sozinho, vá cumprimentar os amigos que eu resolvo a dificuldade e vai ver que não nos faltarão provisões porcinas, durante mais uns tempos. Tenho influências aqui na população e resolverei isto a nosso contento, não gastando mais e recebendo a mesma quantidade. Lá foi... e lá voltou e trouxe a mercadoria em causa e durante mais duas semanas nada faltou.

Claro que, mais tarde procurei saber como fora possível que o camarada condutor tenha dado a volta aos vendedores e questionei-o. Recusou-se ao princípio mas lá acabou por me revelar a arte posta na negociação e que ele bem sabia que aquisições, como e da forma que as fez, não teriam a minha concordância e daí ter-me procurado manter afastado. Então foi assim, confessou: O que aconteceu é que antes das mercas efectuadas, dei umas voltas, fiz umas manobras de risco, como se em rally andasse, dei umas trancadas, passei por cima dum e ficou-se logo, parti as pernas aos outros dois, de forma que e quando me pediram 100, eu lhes tenha dito: “É pá 100, se estivesse vivo pagava, mas assim já morto e aleijado só dou 50."
(continua)


Veríssimo Ferreira (2015)



Publicado por
Manuel Resende (Ferreira)



2 de janeiro de 2016

Post Nº 57 - Textos de Veríssimo (8)

Veríssimo Luz Ferreira
Fur. Mil. da CCAÇ 1422 - Pelundo














OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA


(continuação)
E VAI DAÍ:
“O DESERTOR”
Das duas, uma... ou eu estava a ver mal... ou aquele com as mãos no ar e a "costureirinha" bem à vista, queria entregar-se. Aproximava-se vindo do lado do que fora a estrada que ligava ao Olossato, agora desactivada. Tal como me aconteceu, outros deram por isso e em simultâneo, dirigi-mo-nos para a porta d'armas, onde por acaso até m'arranhei ao desviar o "cavalo de frisa". 1214 e curou. Tínhamos a tiracolo, a prima G3, em posição não ofensiva, mas o que poderia acontecer rapidamente. Em silêncio desconfiado aguardávamos, mas no entrementes afastei dali alguns camaradas, pois que o "tudo ao molho" poderia tornar-se perigoso e porque até nem sabíamos se não seria essa a intenção inimiga. A cena parecia-me impossível de acontecer. Normal não era, vir um qualquer incomodar-nos a horas tais, mas de qualquer forma íamos já antecipando os problemas que costumavam resultar quando se tinham de organizar colunas para levar prisioneiros a Bissau.

O inédito, prendia-se com o facto de estarmos a ver em directo, um IN armado, considerando que nem na mata se deixavam bispar, aquando nos recepcionavam e só os víramos quando a iniciativa fora nossa. Por isso houve sempre dificuldade em fazer estatísticas de quantos eram os feridos ou os eliminados. Mais tarde soube como actuavam para não deixarem rastos e era assim: Constituíam três grupos... um, com as armas com que disparavam mal (em 1965/1966, que depois aperfeiçoaram-se com a ajuda dos cubanos); o 2º grupo tomaria o lugar dos do 1º se atingidos; o 3º, arrastaria os feridos e os que já não diziam nem ai nem ui e também as armas destes. 

Daí que a contabilidade saísse quase sempre por excesso e só através da observação dos restos do líquido espesso que circula nas veias e artérias e que por ali ficara ensopando a terra já de si vermelha, só por aí repito, é que os números batiam mais ou menos certos. Voltando ao desertor: Ia-se apróchegando. Eis senão quando se ouve um tiro lá longe... acordou os nossos sentinelas, tendo um deles, espavorido, gritado:" lá vêm eles"... o furriel de dia, esse por nada deu e continuou a sesta, e nós vimos o visitante parar... tremer... fugir e recuando para o caminho donde viera, desapareceu. 

Contaram-nos que foi agredido pelos seus, mostrado como exemplo a não seguir e punido como traidor. Mas... também tínhamos momentos de puro e são divertimento, pois então. "Construíramos" para tal, um casino, num dos paióis anexos ao condomínio e para onde nos deslocávamos andando de gatas. Eram dois, a 10 metros cada do SPA e o acesso só a partir daí, se podia fazer. Um estava do lado esquerdo (o das bazoocas) e o outro do lado direito (o dos morteiros) e neste ficava então o nosso antro de prazer.

Permanecer lá, só sentados e os bancos, seis ao todo, eram os cunhetes com granadas prontas a entrar ao serviço e até a própria mesa da jogatina eram outros também caixotes cheios daqueles supositórios em forma de míssel terra-ar e que tantas vezes fizeram a diferença. O tecto houvera sido feito com cibes e coberto depois com grossa camada de cimento, porque o tesouro lá depositado, por demais precioso, merecia a obrigatoriedade de estar devidamente acondicionado e protegido. Por esse facto, não tínhamos hipótese de abrir qualquer buraco para que nós, os viciados na lerpa, pudéssemos ter algum ar, vindo do exterior.

Colmatávamos essa falta, fumando desalmadamente... bebendo mesmo sem ter sede... e a luz, fornecida por candeeiros a petróleo. Pertantus... observadas todas as regras de não segurança, mas qu'é qu'isso importava a quem vivia em permanente corda bamba? Distraía-mo-nos assim e sempre se recuperavam os dez mil-réis ontem perdidos. Comigo não... pois que perdia sempre o dobro do amealhado, facto que aceitava, na certeza de que "azar no jogo, sorte com as mulheres". Afinal e comprovei depois nos bailes da minha terra, tratava-se de grande mentira, já que me continuaram a calhar as mais feias. Quando os filhos duma “quelque chose avec” nos vinham incomodar, saíamos então ordeiramente e em magote de seis, pelo buraco onde só um de cada vez, conseguira entrar.

A minha Secção era chamada de "Armas Pesadas" e distribuídos nos foram, por isso, também três morteiros 60, que pesavam mesmo e bem o sentíamos quando os levávamos a tiracolo e nos deslocávamos durante os passeios pedestres através da agreste selva rural, assim estilo rally paper pedonal. E nem sequer levávamos, quer o prato base quer o regulador de distâncias destinado a observar para que a coisa acertasse. Considerávamos que eram apetrechos incomodativos assim mais... mariquices desnecessárias, pois que e disparados a olho nu, não falhavam e nem daquela vez em que um resolveu fugir e desaparecer, mas antes disparou, expeliu e acertou.

E deu-se porque ao sermos recebidos por intenso fogo d'artifício, ali junto à bolanha do Biribão, nós... pumba lá vai disto... mas mesmo utilizando o costumado capacete por baixo, o gajo quando lhe tocaram no percutor, afundou-se e pronto. Guardo religiosamente a chave de fendas com que substituía tal peça ao fim de quatro bojardas enviadas. Desertou? está desertado... mas também fomos culpados, dado que já acontecera com outros... na lama não se disparam tais armas... mas aquela ânsia de corresponder foi fatal.

Aquando da chegada das colunas que nos traziam os mantimentos e até o material de guerra, cabia às Companhias de destino, fazer a segurança das suas áreas e nos percursos de passagem das viaturas. Para tal, emboscava-se e patrulhava-se a fim de que o terreno ficasse desminado e preparava-se tudo nos locais mais perversos e onde já antes tinha havido problemas, para que desta vez não se materializassem. Naquele dia coube ao meu pelotão a preparação da coisa, na estrada que ligava a Bironque. Incumbido disso fui, o que fiz naturalmente, considerando os conhecimentos antes adquiridos e por via do treino que superiormente me fora ministrado ao vivo pelos " ÁGUIAS NEGRAS " de Mansabá e de Bissorã.

Minucioso saiu na escrita, só que no terreno, nada seria igual pois que a rapaziada borrifava-se, não descurando contudo, as seguranças próprias e do grupo mas lá, onde era importante, as ordens emanadas pelos superiores sempre foram cumpridas com coragem e lealdade absolutas. E foi assim, que a excursão nocturna lá partiu, organizadamente desorganizada, uns fumando para que o IN se por aí estivesse, pensasse que eram gambozinos ou pirilampos a faiscar, outros praguejando com a maldita sorte da escolha logo neste dia com tanta chuva, outros ainda maldizendo a empecilhosa lama escorregadia e as botas rotas por baixo e tudo em alta voz como convinha. 

Só que esta destemida juventude já veterana e ao primeiro sinal de alerta, tornava-se num exército disciplinado, aguerrido e cumpridor e se antes pareciam putos reguilas, então eram uns valentes combatentes, antes incapazes de fazer mal, mas depois era o "cá se fazem cá se pagam". Chegados, indiquei-lhes os "leitos" a ocupar o que não seria necessário, que já conheciam bem o esquema, mas pronto... gostavam de ouvir a minha palavra amiga...e aquele toque positivo da palmada no ombro. Para mim escolhera o primeiro lugar donde esperaria que surgissem os problemas, se tudo acontecesse como anteriormente.

A noite ainda se não fizera dia, a chuva continuava mais qu'a muita, a trovoada ribombava assustadoramente, mas o solo molhado e fofo, recebeu-nos carinhosamente. Silêncio absoluto agora, olhos mais que bem abertos, dedos engatilhados e assim se passaram quase duas horas. Já lusco-fusco, começo a ouvir e ali bem perto de mim, o ruído sereno, como o de que alguém viesse a rastejar ao meu encontro. Em alerta máximo fiquei e dei conta da situação aos camaradas do lado. Dois ou três minutos de hiper-tensão depois, aparece-me ali a três metros, uma cabecinha a espreitar e quase disparei. Ela olhou-me, eu olhei-a e creio que foi amor à primeira vista, pelo menos da minha parte nunca mais esqueci aquela que me enfeitiçou pra sempre. Nisto e num saracotear e manso rastejo, ela mirou-me longamente, despediu-se tristonha e com uma lágrima ao canto do olho, que bem na vi, saída daqueles formosos olhos azuis, mostrou-se-me tal como viera ao Mundo e lá foi suavemente atravessando para o outro lado.

Garanto-vos que eram pr'ái 5 ou 6 metros de belíssima cobra. Relembrei-a noutro dia em que e sem querer pisei, indo no jeep, uma qu'até me fez saltar para o chão com o dito em movimento, julgando eu estar a ser submetido a qualquer vil tiroteio ou ter atropelado alguma minazita mal intencionada, pois que o rebentamento fora idêntico. Entretanto lá longe, começava-se a ouvir o roncar das viaturas o que significava que desta vez conseguíramos o objectivo. Então o Cmdt do pelotão que levava o rádio, mas nem usá-lo sabia, tentou o contacto: "Alô, alô...aqui eu...diga se me escuta... ôvo".

Trocou os verbos, pronunciou mal os tempos, mas foi útil para uma saudável risota de descontracção e a ordem veio para abandonarmos o local e recolher ao K3. Como na ida, regressámos "todos ao molho e fé em Deus" e em alegre cavaqueira com a patrulha pedonal, que andara a fiscalizar no vai-vem costumado e constante. Missão cumprida portanto, tomámos o petit-dejeuner que para quem não sabe quer dizer " o café da manhã". Foi-nos dado o resto do dia para descansarmos, o que calhou mesmo bem para pôr a escrita em dia: Saudades PAI, Saudades MÃE. BEIJINHOS E ABRAÇOS PARA TODOS OS RESTANTES FAMILIARES.
(PS: de vez em quando sinto esta necessidade de vos mostrar que também sou culto e daí aquelas duas palavritas em inglês).

Naquela tarde, fui empossado num novo cargo sem remuneração, para quando estivesse com algum tempo disponível, ou seja, "começas amanhã". Chamado havia sido ao resort dos Senhores Oficiais e como era o dia dos meus anos, pensei que me preparavam uma festinha comemorativa e que triste fiquei porque afinal nenhum se havia lembrado do facto, ao contrário dos meus amigos da Secção de Morteiros 60, com quem partilhei o figadal almoço, tendo ainda estado presentes mais alguns camaradas disponíveis. Impunham-me sim, mais sub-humanas tarefas, mas compreendi, após os factos explanados, que de facto não haveria mais ninguém com as superiores e sábias condições para o fazer. E assim, fui incumbido pelo Sr. Capitão Cmdt da Companhia, de ser o desenhador-arquitecto-engenheiro, para construir as instalações onde acabaram por ser o restaurante do K3 e anexos, ou melhor dizendo, a cozinha e refeitório.

Que seja... se tem de ser... vamos nessa... amo desafios propostos à minha sobre dotada inteligência. E porquê eu? devido ao facto de saber o que era um tijolo? o cimento? a areia e até as pedras? (mas com essas não poderia contar porque ali em Saliquinhedim não havia uma sequer que fosse). Dispus-me e elaborei um majestoso plano qu'até me admirou a mim próprio. Para numa mais eficiente, rápida e assaz sei lá o quê, ousei suplantar as técnicas em vigor, decidindo começar pelo telhado em vez de pelas paredes que o aguentariam e dado que se aproximava a época das chuvas, estaríamos pelo menos abrigados.
Mas então... disse o arquitecto vaidoso: É pá, começa pelos caboucos e pranta lá os alicerces. 

Pensei... pensei... pensei, o que me fez uma bruta dor de cabeça e vendo que até era capaz de resultar, pus mãos à obra. Criei então, uma equipe de malta que não pudesse discutir as minhas ideias, ou seja... aboli à partida todos aqueles que percebessem da arte de pedreiro, pois gosto pouco de ser criticado e sabia que qualquer obra prima, mesmo bela e útil, tem sempre detractores. A coisa lá se foi fazendo, fio de prumo também não tínhamos, íamos resolvendo a olho nu, e por isso é que as paredes do edifício surgiram sem simetria, qu'é assim como dizer, que deveriam estar direitas de baixo para cima e nunca ao contrário. Ficaram mais ou menos, mas sólidas... Depois disso, deram-me então razão na questão do telhado só que e porque deveria ser instalado lá no alto, estava ali uma carga extra de trabalhos, mas fez-se com cibes.

Mandei também fazer duas portas, uma para a entrada e outra para a saída e vice versa e mais quatro janelas, duas maiores viradas para a mata para fazer ciúmes aos inimigos e as outras duas não. In's que sabíamos nos estariam a bispar cheios de fome, coitados. Numa dessas, a 1ª a seguir à porta de saída, desenhei-a propositadamente a fim de despejar todos os despojos sobrantes, que alimentariam os abutres.
E assim se completou a obra.
(continua)


Veríssimo Ferreira (2015)



Publicado por
Manuel Resende (Ferreira)