16 de janeiro de 2016

Post Nº 60 - Textos de Veríssimo (11)

Veríssimo Luz Ferreira
Fur. Mil. da CCAÇ 1422 - Pelundo














OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

(continuação)
E VAI DAÍ:
A 12 de Junho de 1966 aconteceu o impensável, embora a morte nos tivesse já levado em 17 de Maio último um camarada FURRIEL MILICIANO e também com a traição duma mina. Digo impensável, por ter sido ali naquele sítio. A vítima desta vez foi o nosso Capitão Dinis Corte-Real, Comandante da Companhia. E eu estava lá... e eu vi como foi. O seu jeep e o meu unimog cruzar-se-iam dentro de segundos. Tudo fora preparado, disso continuo convencido, para ser detonada à distância e só mesmo quando da sua passagem, o que até nem era habitual. Deslocava-se portanto, nesse dia e àquela hora, a título excepcional e apenas meia-dúzia, disso sabiam.

Já passáramos por ali mais de vinte vezes, a estrada fora picada aquando da primeira passagem e depois, de cinco em cinco minutos, voltávamos a fazer o mesmo trajecto com ida e volta, ora levando a água trazida de Farim, ora regressando para nova recolha e a área circundante tinha vasta visibilidade e estava capinada e para além disso tínhamos patrulhas a pé e em constante movimento de vai-vem, vigiando os três Kms que separavam o aquartelamento do rio.

Não faltou ou faltava portanto a segurança e para mim tratou-se dum atentado traiçoeiro, bem organizado e conseguido pelo inimigo. Perdi ali uma grande amizade e mais um dos INESQUECÍVEIS. Chegado ao aquartelamento foi-me dada a ordem para ir emboscar num local onde só deveriam ir tropas, com um efectivo mínimo humano, equivalente ao d'uma Companhia (O Sr. Cmdt. do Batalhão o dissera) e não apenas com nove homens tantos quantos constituíamos a Secção de Morteiros. Revoltei-me inicialmente, dados os riscos e o possível desastre, mas acatei e cumpri, como não podia deixar de ser, não sem que antes recordasse a determinação superior de que "ali não menos de150 homens a emboscar".

A progressão enviesada através da mata fi-la, após preparada com redobrados cuidados. Chegados ao local, dispus as tropas em presença, ao longo de mais ou menos 50 metros e ladeando o objectivo, que ficava perpendicular à estrada. Talvez uma hora depois, o "vigia" mais afastado, veio rastejando até mim e segreda-me: "É pá, vejo umas "sombras" e não são tão poucos como isso". Desloquei-me lá e apesar da copiosa chuva, do nevoeiro e da mata cerrada, confirmei que na verdade, haviam movimentações ali a 100 metros e que apesar da forma cuidadosa, iriam cair na boca do lobo. Alterei de imediato o dispositivo antes montado, de forma a constituir nova zona de morte para quem lá vinha (o inimigo decerto, ou muito provavelmente).

Pelas experiências antes vividas, foi minha convicção que após aí entrados, não mais de lá sairiam para contar como fora. Passados foram minutos terríveis, os dedos já tremiam nos gatilhos, e se não liquidámos o 2º Pelotão da nossa CCAÇ 1422, foi porque ouvi do lado de lá: Ó Veríssimo...NÃO DISPARES...SOU EU O MACEDO. Acontecera que, no aquartelamento e após acalorada discussão (ao que soube mais tarde), aquele Senhor ALFERES MILICIANO, tomara a iniciativa de ir colaborar e ajudar também no nosso regresso. Crente não fui ou sou, mas naquele dia e àquela hora, o destino estava lá e passou por ali, materializado naquela voz: "Ó VERÍSSIMO NÃO DISPARES".

DO INFERNO PARA O CÉU
Estando aqui a VIVER Guiné lá se foram alguns dos fantasmas que me
incomodavam desde 1967. E tenho-o feito a brincar... a brincar com os momentos angustiosos vividos, particularmente no que se refere aos doze meses no mato. Já os últimos oito meses da comissão foram passados em Bissau. Tiro... e queda... e nem ainda hoje acredito... mas na verdade tive de abandonar a minha CCAÇ 1422. Inicialmente, por motivos odiosos e alheios à minha vontade, "voluntariei-me" para fazer parte da 3ª Companhia de Comandos do Quartel General, só que essa integração após a aprovação dos exames a que me sujeitaram, não foi possível dada a chegada duma verdadeira, treinada e formada na Metrópole.

Enquanto aguardava o regresso ao ponto de partida, colocaram-me, para ajudar administrativamente, na Secção de Funerais e Registo de Sepulturas/1ª Repartição/QG e que acabei por vir a chefiar. São-me disponibilizadas, residência militar junto à messe em Santa Luzia e também uma viatura descaracterizada, um mini moke. Sem obrigações nem horários, competia-me unicamente, estar sempre disponível para enfrentar os funestos acontecimentos, inerentes à função que agora exercia.

Ao saber destes, tinham de ser imediatamente tomadas as providências para que tais cruéis notícias fossem transmitidas para Lisboa, a fim de que, do HORROR, fosse dado primeiro, conhecimento aos familiares. Impunha-se-me, que nalguns casos, fizesse o reconhecimento presencial, na morgue do Hospital Militar, se antes as Companhias onde o desenlace se dera, mo não comunicassem. Vinham a seguir, as cerimónias religiosas e toda a elaboração da documentação para a célere trasladação. Como vêem, saíra do Inferno e estava agora no purgatório nada fácil e com tantos sentimentos contraditórios, a quererem destruir-me.

O CÉU, Bissau pois. A cidade tinha de tudo... fui sócio da UDIB; ia ao cinema... ao aeroporto... ao cais ver quem chega, nem sonhando a que martírio... contrastando com a alegria dos que partiam... nos : Uige... Niassa... Manuel Alfredo... Rita Maria... Ana Mafalda. A minha presença era requerida no futebol... nos locais com boa comida... na piscina de Nhacra... nos camarões em Quinhamel... e tudo no maior sossego que por ali não se vislumbrava ainda a guerra ... nem haviam bolanhas para atravessar... nem percutores do morteiro para substituir ou sequer G3 para olear. A relação com os cidadãos, de amizade mais tarde, era excelente e facilmente nos acolhiam nos seus seios.

Existiam grandes armazéns que tudo vendiam desde agulhas a automóveis e nos mercados nada faltava. As noites eram famosas e já apareciam simulacros de boites. Em momentos vagos, visitei a Sé... o Liceu... o Palácio do Governador
(Arnaldo Schutlz então)... o Pilão... a fábrica da gasosas... o Café Portugal... o Pintosinho... a Ultramarina... a casa Gouveia... O BNU... a Rádio... as tascas que serviam ostras ao natural... enfim !!!
Turismo de guerra foi o que fiz por quase todo o Norte da Guiné, particularmente na zona do Oio e pelas matas que rodeavam Morés. Depois passei os últimos oito meses em Bissau e aí tudo foi do bom e do melhor. Até tive o luxo de ter comigo durante 2 meses a minha filha e a minha mulher.
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A certa altura mandaram-me regressar à Metrópole, mas poderiam ter tido a delicadeza de perguntar:
- Queres ir ou ficar?
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Um tal de Uíge convida-me então a vir com ele. Lisboa engalanou-se para me receber e, debaixo da ponte e com o cais de desembarque à vista, juntei-me ao enorme coro que ali já deixara a sua voz e também gritei: VIVA A PELUDA.
E hoje se por lá passarem, porque o eco ainda se houve desde a foz à nascente do Tejo, têm que saber que tais palavras foram entoadas por centenas de milhares de COMBATENTES, e que o fizeram em grande momento de felicidade.
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E SE ESCUTAREM COM ATENÇÃO, OUVIR-ME-HÃO DECERTO.

(FIM)


Veríssimo Ferreira (2015)



Publicado por
Manuel Resende (Ferreira)



11 de janeiro de 2016

Post Nº 59 - Textos de Veríssimo (10)

Veríssimo Luz Ferreira
Fur. Mil. da CCAÇ 1422 - Pelundo













OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

(continuação)
E VAI DAÍ:
Entrementes em meados de Abril, é-me concedida uma licença de 5 dias a fim de "tirar a carta de condução" em Bissau. Lá cheguei... eram duas da tarde, almocei na Pensão onde me hospedei, ali perto do Liceu e fui dormir a sesta. Jantei depois um bruto bife com molhança picante e bem acompanhado por um tinto... mais sobremesa, whisky e café. De seguida, fui dar um passeio pela cidade. Ali no largo onde se situava o Palácio do Governador e numa esquina da rua que vai para o Hospital e segue para Brá e por aí fora, parei no Café Portugal para novo mata-bicho e dou de caras com um amigo do meu "povo", piloto das FAP. Abraços para cá e para lá, conversámos sobre isto e mais aquilo, e dispôs-se a levar notícias e saudades minhas, à família, o que agradeci.

Só que às tantas diz: Ó pá porque não vens connosco que t'arranjo um lugar no Skymaster? Partimos depois de amanhã. Ai qu'este gajo está tonto.... pensei, mas a ideia começou a toldar-me o espírito... a fervilhar... e a fervilhar cada vez mais e mais... e disse: Porque não? que terei de fazer? como resolver isto? será que? OU SERÁ QUE? Por sorte e por pesquisas encetadas por nós dois, soubemos que o meu Comandante de Batalhão, chegara de Catió e estava por acaso no QG, que nem longe dali era. E fomos lá e consegui contactá-lo e prometeu assinar tudo a autorizar se "o teu Comandante de Companhia nada tiver contra". Contacta-o... ele que me ligue e amanhã à tarde, passa por cá. Através dos rádios militares foi conseguida a ligação e na tarde seguinte, lá estava eu de novo, cheio de continências e esperanças... e lá recebi os papéis... passaportes... vacinas e mais ainda, com os votos de Boa Viagem e "goza rapaz" mas volta daqui a 30 dias e fica sabendo: "estás bem visto pelo teu Capitão".

INCRÍVEL, mas verdadeiro e no outro dia, ao nascer daquele bonito sol, levantámos voo e em boa verdade só me convenci que não sonhava quando parámos nas Canárias, devido a avaria num dos motores do avião o que e como soube só 30 anos depois, era hábito acontecer. Foram 4 dias magníficos que ali passei, comprei uma Canon, um gravador e um rádio portátil da Sony e hospedado estive como convidado, nas instalações militares espanholas do aeroporto, até que e reparada (?) a coisa, nos fizemos rumo a Portugal e era já noite quando chegámos, tendo apenas como único transporte para sair dali, rumo à santa terrinha um tal de comboio correio que demorou 8 horas a chegar em vez das duas e meia habituais.

Alô K3: Apresenta-se o Senhor Fur. Mil. que "desertou" daqui há 35 dias, para ir a Bissau tirar as cartas de condução de veículos ligeiros, pesados e motos e que acabou por andar a engonhar no bem-bom da Metrópole, devido a causas e artes mágicas. Trago, para paparmos juntos, uns chóriços lá do porco dum meu parente, bem como uns paínhos do lombo do mesmo animal. Nisto ouve-se uma voz vinda lá do fundo: "Calha bem qu'o lume está aceso". Era dum dos homens da minha Secção, experimentado nos temperos com que besuntava as distraídas cabras do mato que ultimamente e por vezes, se deixavam apanhar por ali e que melhor ainda, untava os pombos verdes que derrubava com a pressão d'ar.

Outros foram chegando para me dar as boas-vindas, atraídos que foram, pelo agradável cheirinho do grelhado e assim se consumiram os vinte quilos do bom enchido de fumeiro e dois garrafões de catorze litros do tinto ali estacionado para consumo interno, para além das bastas cervejolas das grandes. Pela matina, ergui-me ainda lusco-fusco e fui prestar vassalagem ao aquartelamento e mirar as novidades: A cozinha estava já com as paredes caiadas e na parte virada para o exterior, onde havia sido construído um muro, um metro para fora e cheio com terra, a fim de resistir às investidas do espingardum inimigo. O tecto perfeito.

Também tínhamos agora, um gerador para fornecer luz a quatro potentes holofotes, colocados um a cada canto do recinto, luz essa que só seria ligada quando das visitas habituais nocturnas. A ideia era proporcionar aos manganões, uma melhor visão aquando da fuga rápida, que costumavam iniciar logo que os cumprimentávamos de acordo com as mais elementares regras da boa educação. Dentro ainda daquele espírito bondoso, que nos animava queríamos que não tropeçassem no escuro e, que se não aleijassem ou partissem alguma perna, coitados. Além, junto à via rápida para Mansabá, perto da porta d'armas, fora criado um mini-zoo e construído um tanque onde boiava um metro de crocodilo, que fazia a alegria da rapaziada e também eu colaborei com alguns restos do leite condensado matinal, que comia às colheres, em vez do misturar com água, coisa que ainda hoje pouco   consumo porque líquido sensaborão e com cheiro a lixívia. Uso apenas para lavagens.

Ao lado, fizera-se uma horta onde despontavam alfaces, couves e cenouras. Os resultados finais foram negativos, porque e a meu ver, especialista que fui em nabos e na produção de tomates, o terreno era ensopado pelas águas do Cacheu e estas traziam resquícios de sal marinho. À volta do hotel e para lá das redes do arame farpado, a área capinada fora aumentada e as vistas estavam soberbas. Pena que os passeios a rodear as suites, continuavam feitos lamaçal e mais ainda agora, graças à bendita chuva de quentes águas, própria da época iniciada e que durará até lá para Oitembro, mas que me permitirá tomar grandes banhos ao ar livre, comungando com a natureza e utilizando o Lifebuoy, que ainda uso, salvo um dia antes de ir ao barbeiro, pois que ele costumava dizer-me: "a sua cabeça cheira a cão". E pronto, despeço-me até "ao meu regresso".


K3, Maio de 1966. Aquela manhã nascera chuvosa, tal e qual estivera a noite que passei deitado na mata emboscando. Chegara há pouco ao bedroom, dormira uma hora, mas ergui-me do leito e os pés ficaram logo em água, que por acaso ainda não molhava o colchão de suaves penas. Peguei nos chinelos de Macau, usados habitualmente nos pés... pois então. Trouxe-os na mão porém e até à saída da suite, vim devagar e lentamente para não acordar a minha Secção de Morteiros 60. Cinco metros e trinta depois e já na rua propriamente dita, escorreguei e lá ficou a gabardine com que dormira, cheia de avermelhada lama.

Ia para bater à porta do bar, após ter descido dez degraus, só que estava já aberta e afinal eu não era o único madrugador. Lá fora notava-se a rapaziada acordando, qu'o novo dia surgia. Hoje estava eu de serviço à água, que é como quem diz, lá iria com mais oito ou nove voluntários escolhidos, até Farim, de Unimog repleto de bidons, garrafões e tudo o que mais houvesse, para os encher na fonte. Até nem era uma operação difícil, pois que enquanto isso, aproveitávamos para nos revezarmos e para ali mesmo ao lado petiscarmos. Cada qual levava alguns dos poucos morfes sobrantes ainda da remessa que familiares enviaram e para além disso, o taberneiro libanês também vendia alguns razoáveis produtos para as, comezaina e bebezaina. A tarefa da recolha aquifera terminava três viagens após o início, o que resultava mais ou menos até aí pró meio-dia, hora mesmo boa para deglutir o almoço. A distancia do aquartelamento até à jangada que nos passava para a banda di lá, era precisamente de três Km's (daí o nome K3)... a estrada com mais do que menos buracos... tudo capinado à volta... vistas largas.

A rapaziada ia ao rio banhar-se e pescar. Banhar-se mas só depois de atirar uma ou duas granadas para afugentar os enormes crocodilos que por ali andavam e que eram o sustento de especializados caçadores. Vendiam a carne e o bife tenrinho. Negociavam também a pele do monstro, depois de seca. O Higino Arrozeiro, queria ir para França, logo após o cumprimento do dever na Guiné a fim de poder melhor ajudar a sua mãe viúva, com quem vivia e daí o ter-me pedido uma ajudita. Vamos nessa pá... tenho nisso muito gosto, vou mandar vir um livro de leitura e a gramática mas entretanto podemos já a ver os primórdios. Claro que estranhou (mas ia tomando notas) que o "au" se lesse "ô"... ; o "du"= "diú" ... ; o "en= â ... e o "ou"=" ú ". Chegaram entretanto da Metrópole os livros pedidos.

Por e devido ao facto de me ter sido dada a hipótese de ter ido passar umas férias, interrompemos mas deixei-lhe trabalho de casa para fazer. Sei que os fez que bem os vi, quando regressei, mas ele já cá não estava. Partira depois de a viatura em que seguia, ter pisado uma mina que o levou sabe-se lá para onde. Em Bissau voltei a encontrar o meu amigo, que jazia na capela do cemitério, a aguardar trasladação. Eu mesmo o meti no Niassa embrulhado que estava o caixão, em quatro tábuas, não sem que o tenha admoestado por ir daquela forma. Antes ainda ofereci-lhe com dedicatória... a gramática... o livro de leitura e os trabalhos de casa que ele fizera, e que não corrigi. E ali, no cais do Pigiguitti, cornetim amigo tocou o toque de Silêncio. E eu, em sentido, acompanhei-o assobiando... tremendo... até que o barco se diluiu no horizonte.
(Continua)

Veríssimo Ferreira (2015)



Publicado por
Manuel Resende (Ferreira)


6 de janeiro de 2016

Post Nº 58 - Textos de Veríssimo (9)

Veríssimo Luz Ferreira
Fur. Mil. da CCAÇ 1422 - Pelundo














OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

(continuação)
E VAI DAÍ:
Março de 1966 e nove meses de comissão completados. A continuar assim regressaremos à Metrópole passados que sejam outros onze. A construção da cozinha estava quase, mas não foi fácil, qu'os catarpiladores inimigos tentaram destruír tudo à noite e a tiro. Só que mais teimosos que nós não eram e a obra acabou por ser feita, também e porque, entretanto, lhes arrasámos o bunker privilegiado que usavam para o derrube... Estava em local quase impossível de detectar e a ninguém passou pela cabeça que ali fosse. Descobriu-o acidentalmente, um dos nossos, comedor (e eu comparsa) incansável de pombos verdes e coelhos, que, caçando certo dia, junto às exteriores redes de arame farpado (e eram três devidamente adornadas com garrafas vazias e que provocavam o efeito de sineta, aquando dalguma invasão se a houvesse e houve, sendo que na maioria das vezes, menos duas, eram macacos distraídos,) "um dos nossos" repito, apercebeu-se que um dos maus, entrava para um embondeiro.

Irreal nos pareceu, logicamente, mas para que o diabo as não tecesse, fomos confirmar e lá estava a árvore... escarafunchada... oca o suficiente para que coubesse um marmanjola e até tinha dois buracos, estilo binóculo, virados para o aquartelamento. Esclarecido ficava assim, o porquê de que sempre que saíamos por aquele lado, nos mandavam com alguma desalmada e mal intencionada fogaracha. Reunimos a equipe das demolições da Companhia, consultámos os nossos mais que maquiavélicos especialistas em desratização, capazes de acertar em qualquer melga a cem metros, planeámos o que havia a planear e pós cinco demorados minutos de intenso debate, foi escolhido o momento certo para a operação, existindo unanimidade da certeza que só avançaria quando tivéssemos a prova, que o voyeur estava mesmo mirando.

Numa espera, cuidadosamente secreta, resultou que no dia seguinte nos informam através do telemóvel ANGRC9, que um individuo cujo respectivo, entrara e que não estava só. Três outros, armados até aos dentes, acompanhavam-no, o que nos levou a nós "os cérebros" a supor que, sendo quatro iriam jogar uma suecada. Feito o conveniente rastreio de aproximação, a fim de lhes enviarmos as duas preparadas epidurais... estas lá  foram... quase em simultâneo... após a breve ordem de "vai". E mais uma vez, aquelas, pintalgadas de verde-militar bazookas, não falharam, também graças àqueles utilizadores de mãos de ouro, assaz experimentados. O parto, ou melhor, o partir (do embondeiro) envolto em pó qual pulverização sheltoxkiana, estava concluído.

É provável que tenhamos interrompido a jogatana em curso, porque ao visitarmos, posteriormente, o sítio, encontrámos muitos e variagados vestígios, não só de cabidela, como também o chão, estava vermelho, e mais ainda... cartas dum baralho interrompido e dois ases de paus, o que nos levou a concluir, que um dos quatro intervenientes, era, mesmo, um grande batoteiro. O meu amigo felupe, o 44, propôs-se a tirar-me uma arreliadora matacanha. Devidamente desinfectado tinha já um afiado alfinete de dama... sentou-se de frente a mim, pegou-me nos pézinhos tamanho do sapato 43, e olhou-os assim estilo quando miro aqueles de coentrada.
Eu entretinha-me a tomar Cavalo Branco. Tira lá isso sem me magoares, que bebes a seguir... Bebeu após me apresentar aquela bolha cheia de bichinhos lá dentro, fazendo lembrar os cachos de chocos a nascer, que se vêem nas praias.

Este rapaz, de quem fui muito amigo e ele meu também, mereceu-me toda a atenção e dediquei-lhe algum do meu tempo disponível. Fazia perguntas e queria saber mais... ele fosse sobre o nosso modo de viver em Portugal... os costumes, os usos... o significado de palavras e custava-lhe acreditar que o Mundo fosse da forma como eu lho descrevia. No fundo, o meu Mundo também só era o Alentejo do Alto e foi presunção querer Alentejanizá-lo. Divertia-se quando lhe expliquei que comíamos o porco de várias maneiras o que de todo ele repudiava com o "bé" que suponho ser assim uma espécie de "porra". Ensinei-o a jogar dominó com umas peças com desenhos de posições sexuais e ria, ria muito, o que também ainda hoje faço quando se m'alembra a cena. Perguntou-me também sobre os Deuses, sim que ele estranhava haver mais do que um.

Dentro do pouco que sabia sobre tal, lá lhe fui explicando o possível. Falei-lhe de quando menino de escola, ter quase obrigatoriamente que frequentar a igreja e saber até o Pai-Nosso, mas só até àquele certo dia em que descobri que as senhas que recebia por ir à catequese e com as quais me davam pelo Natal 125 g de manteiga, ou mais, dependendo do nº de presenças, eram a forma de me cativarem para a religião, o que me desgostou. E mais ainda... ao saber, que a manteiga vinha da América oferecida e para ser distribuída pelos mais pobres, revoltei-me. Mas mais lhe disse: Contudo, não deixei de lá ir, mas ficando cá fora, aquando da saída das missas e para ver, as miúdas. De qualquer forma, continuei, o teu a quem chamas Alá, gosta mesmo de mim, e tanto tanto, qu'até te mandou criares porquinhos e não os comer, qu'esse será crime a ser cometido por este teu amigo, já pecador confesso.

Mas... o meu deixa as mulheres andarem nuas da cintura pra cima e o teu obriga-te a despir as da tua raça... e enquanto assim falava, lá punha de novo a bocarra escancarada, com a dentuça branca toda à vista e batendo ruidosamente os pés no chão barrento. Ganhaste malandro, pensei...mas deixa que havemos de voltar ao assunto, grande amizade ficou entre nós e para além disso foi óptimo colaborador militar da CCAÇ 1422, pois que sendo conhecedor do terreno que nos competia gerir ali no K3, foi um excelente guia para além de também e disfarçadamente houvesse sido meu segurança particular: "
"Não se cheguem ao "nôsso furié" que têm de se haver comigo, parecia ele dizer olhando para a mata". O sonho dele era poder vir a "conduzir" aviões e helicópteros e fez-me vários pedidos para que eu intercedesse nesse sentido. Na verdade e sem saber como lhe responder sem o magoar, adiei a questão até que um dia lá consegui dizer-lhe a verdade e em contrapartida convidei-o para ir aprender primeiro a "pilotar" a GMC que costumava ir à frente quando em coluna, íamos recolher os abastecimentos no caminho esburacado que nos ligava a Mansabá.

Para tal tive a permissão superior, embora um senhor alferes se tenha mostrado contra, argumentando que ele poderia desertar e levar-nos a viatura. Nem estava mal pensado, mas dada a conduta do rapaz e conhecendo as famílias, lá se procedeu conforme o meu pedido e era vê-lo todo vaidoso e já encartado, ao volante do Unimog da água. Conheci-lhe a família toda na sua tabanca em Farim. Partilhámos bianda e galinha de chabéu preparada pela sua mais bela mulher, a Fátima e não gostei mas tive de aceitar muito honrado, que pusesse o meu nome num dos filhos que houvera nascido. Em Abril de 66, julgo eu, e porque o vagomestre iria a Bissau, para consultas médicas, foi-me ordenada colaboração, (conhecida que era a minha fama por muito comer e melhor beber), no sentido de criar outras e melhores alimentações a fornecer aos 150 elementos que constituíam a Companhia.

Aceitei o desafio e com a tesouraria disponível fez-se. Para já o menú habitual (a tal dobrada) passaria só a ser disponibilizada 5 dias por semana, porque ao Sábado propus-me apresentar um prato novo e fiz o que ficou conhecido por "varrasco à K3". E ao Domingo, "restos à Brás", aliás, prato baseado no bacalhau à dito, só que não havendo este, aproveitava os sobejos do dia anterior, desossavam-se, misturava umas batatitas finas, mais uns ovos e enfim... comia-se e que me lembre nunca sobrou. A questão principal, punha-se mais, em como e onde arranjar porcos para tanta gente, o que entretanto se resolveu com a preciosa ajuda do condutor do jeep que me acompanhou às compras em Farim. Ele tinha uma lábia fora de série, até falava (inventava) quaisquer dos dialectos, ele até era palhaço de circo na vida civil e facilmente convencia o povo das tabancas dali dos arredores.

Nem sempre, foi assim tão elementar mas lá dava a volta. Na 1ª semana tudo correu bem e com 50 pesos comprava um bísaro, mas logo na 2ª pôs-se a questão dos inflacionados preços que nos exigiam. É que aumentaram o produto para o dobro. Por proposta que aceitei, foi-me dito claramente: meu furriel, deixe o assunto comigo, hoje faço as compras sozinho, vá cumprimentar os amigos que eu resolvo a dificuldade e vai ver que não nos faltarão provisões porcinas, durante mais uns tempos. Tenho influências aqui na população e resolverei isto a nosso contento, não gastando mais e recebendo a mesma quantidade. Lá foi... e lá voltou e trouxe a mercadoria em causa e durante mais duas semanas nada faltou.

Claro que, mais tarde procurei saber como fora possível que o camarada condutor tenha dado a volta aos vendedores e questionei-o. Recusou-se ao princípio mas lá acabou por me revelar a arte posta na negociação e que ele bem sabia que aquisições, como e da forma que as fez, não teriam a minha concordância e daí ter-me procurado manter afastado. Então foi assim, confessou: O que aconteceu é que antes das mercas efectuadas, dei umas voltas, fiz umas manobras de risco, como se em rally andasse, dei umas trancadas, passei por cima dum e ficou-se logo, parti as pernas aos outros dois, de forma que e quando me pediram 100, eu lhes tenha dito: “É pá 100, se estivesse vivo pagava, mas assim já morto e aleijado só dou 50."
(continua)


Veríssimo Ferreira (2015)



Publicado por
Manuel Resende (Ferreira)