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2 de janeiro de 2016

Post Nº 57 - Textos de Veríssimo (8)

Veríssimo Luz Ferreira
Fur. Mil. da CCAÇ 1422 - Pelundo














OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA


(continuação)
E VAI DAÍ:
“O DESERTOR”
Das duas, uma... ou eu estava a ver mal... ou aquele com as mãos no ar e a "costureirinha" bem à vista, queria entregar-se. Aproximava-se vindo do lado do que fora a estrada que ligava ao Olossato, agora desactivada. Tal como me aconteceu, outros deram por isso e em simultâneo, dirigi-mo-nos para a porta d'armas, onde por acaso até m'arranhei ao desviar o "cavalo de frisa". 1214 e curou. Tínhamos a tiracolo, a prima G3, em posição não ofensiva, mas o que poderia acontecer rapidamente. Em silêncio desconfiado aguardávamos, mas no entrementes afastei dali alguns camaradas, pois que o "tudo ao molho" poderia tornar-se perigoso e porque até nem sabíamos se não seria essa a intenção inimiga. A cena parecia-me impossível de acontecer. Normal não era, vir um qualquer incomodar-nos a horas tais, mas de qualquer forma íamos já antecipando os problemas que costumavam resultar quando se tinham de organizar colunas para levar prisioneiros a Bissau.

O inédito, prendia-se com o facto de estarmos a ver em directo, um IN armado, considerando que nem na mata se deixavam bispar, aquando nos recepcionavam e só os víramos quando a iniciativa fora nossa. Por isso houve sempre dificuldade em fazer estatísticas de quantos eram os feridos ou os eliminados. Mais tarde soube como actuavam para não deixarem rastos e era assim: Constituíam três grupos... um, com as armas com que disparavam mal (em 1965/1966, que depois aperfeiçoaram-se com a ajuda dos cubanos); o 2º grupo tomaria o lugar dos do 1º se atingidos; o 3º, arrastaria os feridos e os que já não diziam nem ai nem ui e também as armas destes. 

Daí que a contabilidade saísse quase sempre por excesso e só através da observação dos restos do líquido espesso que circula nas veias e artérias e que por ali ficara ensopando a terra já de si vermelha, só por aí repito, é que os números batiam mais ou menos certos. Voltando ao desertor: Ia-se apróchegando. Eis senão quando se ouve um tiro lá longe... acordou os nossos sentinelas, tendo um deles, espavorido, gritado:" lá vêm eles"... o furriel de dia, esse por nada deu e continuou a sesta, e nós vimos o visitante parar... tremer... fugir e recuando para o caminho donde viera, desapareceu. 

Contaram-nos que foi agredido pelos seus, mostrado como exemplo a não seguir e punido como traidor. Mas... também tínhamos momentos de puro e são divertimento, pois então. "Construíramos" para tal, um casino, num dos paióis anexos ao condomínio e para onde nos deslocávamos andando de gatas. Eram dois, a 10 metros cada do SPA e o acesso só a partir daí, se podia fazer. Um estava do lado esquerdo (o das bazoocas) e o outro do lado direito (o dos morteiros) e neste ficava então o nosso antro de prazer.

Permanecer lá, só sentados e os bancos, seis ao todo, eram os cunhetes com granadas prontas a entrar ao serviço e até a própria mesa da jogatina eram outros também caixotes cheios daqueles supositórios em forma de míssel terra-ar e que tantas vezes fizeram a diferença. O tecto houvera sido feito com cibes e coberto depois com grossa camada de cimento, porque o tesouro lá depositado, por demais precioso, merecia a obrigatoriedade de estar devidamente acondicionado e protegido. Por esse facto, não tínhamos hipótese de abrir qualquer buraco para que nós, os viciados na lerpa, pudéssemos ter algum ar, vindo do exterior.

Colmatávamos essa falta, fumando desalmadamente... bebendo mesmo sem ter sede... e a luz, fornecida por candeeiros a petróleo. Pertantus... observadas todas as regras de não segurança, mas qu'é qu'isso importava a quem vivia em permanente corda bamba? Distraía-mo-nos assim e sempre se recuperavam os dez mil-réis ontem perdidos. Comigo não... pois que perdia sempre o dobro do amealhado, facto que aceitava, na certeza de que "azar no jogo, sorte com as mulheres". Afinal e comprovei depois nos bailes da minha terra, tratava-se de grande mentira, já que me continuaram a calhar as mais feias. Quando os filhos duma “quelque chose avec” nos vinham incomodar, saíamos então ordeiramente e em magote de seis, pelo buraco onde só um de cada vez, conseguira entrar.

A minha Secção era chamada de "Armas Pesadas" e distribuídos nos foram, por isso, também três morteiros 60, que pesavam mesmo e bem o sentíamos quando os levávamos a tiracolo e nos deslocávamos durante os passeios pedestres através da agreste selva rural, assim estilo rally paper pedonal. E nem sequer levávamos, quer o prato base quer o regulador de distâncias destinado a observar para que a coisa acertasse. Considerávamos que eram apetrechos incomodativos assim mais... mariquices desnecessárias, pois que e disparados a olho nu, não falhavam e nem daquela vez em que um resolveu fugir e desaparecer, mas antes disparou, expeliu e acertou.

E deu-se porque ao sermos recebidos por intenso fogo d'artifício, ali junto à bolanha do Biribão, nós... pumba lá vai disto... mas mesmo utilizando o costumado capacete por baixo, o gajo quando lhe tocaram no percutor, afundou-se e pronto. Guardo religiosamente a chave de fendas com que substituía tal peça ao fim de quatro bojardas enviadas. Desertou? está desertado... mas também fomos culpados, dado que já acontecera com outros... na lama não se disparam tais armas... mas aquela ânsia de corresponder foi fatal.

Aquando da chegada das colunas que nos traziam os mantimentos e até o material de guerra, cabia às Companhias de destino, fazer a segurança das suas áreas e nos percursos de passagem das viaturas. Para tal, emboscava-se e patrulhava-se a fim de que o terreno ficasse desminado e preparava-se tudo nos locais mais perversos e onde já antes tinha havido problemas, para que desta vez não se materializassem. Naquele dia coube ao meu pelotão a preparação da coisa, na estrada que ligava a Bironque. Incumbido disso fui, o que fiz naturalmente, considerando os conhecimentos antes adquiridos e por via do treino que superiormente me fora ministrado ao vivo pelos " ÁGUIAS NEGRAS " de Mansabá e de Bissorã.

Minucioso saiu na escrita, só que no terreno, nada seria igual pois que a rapaziada borrifava-se, não descurando contudo, as seguranças próprias e do grupo mas lá, onde era importante, as ordens emanadas pelos superiores sempre foram cumpridas com coragem e lealdade absolutas. E foi assim, que a excursão nocturna lá partiu, organizadamente desorganizada, uns fumando para que o IN se por aí estivesse, pensasse que eram gambozinos ou pirilampos a faiscar, outros praguejando com a maldita sorte da escolha logo neste dia com tanta chuva, outros ainda maldizendo a empecilhosa lama escorregadia e as botas rotas por baixo e tudo em alta voz como convinha. 

Só que esta destemida juventude já veterana e ao primeiro sinal de alerta, tornava-se num exército disciplinado, aguerrido e cumpridor e se antes pareciam putos reguilas, então eram uns valentes combatentes, antes incapazes de fazer mal, mas depois era o "cá se fazem cá se pagam". Chegados, indiquei-lhes os "leitos" a ocupar o que não seria necessário, que já conheciam bem o esquema, mas pronto... gostavam de ouvir a minha palavra amiga...e aquele toque positivo da palmada no ombro. Para mim escolhera o primeiro lugar donde esperaria que surgissem os problemas, se tudo acontecesse como anteriormente.

A noite ainda se não fizera dia, a chuva continuava mais qu'a muita, a trovoada ribombava assustadoramente, mas o solo molhado e fofo, recebeu-nos carinhosamente. Silêncio absoluto agora, olhos mais que bem abertos, dedos engatilhados e assim se passaram quase duas horas. Já lusco-fusco, começo a ouvir e ali bem perto de mim, o ruído sereno, como o de que alguém viesse a rastejar ao meu encontro. Em alerta máximo fiquei e dei conta da situação aos camaradas do lado. Dois ou três minutos de hiper-tensão depois, aparece-me ali a três metros, uma cabecinha a espreitar e quase disparei. Ela olhou-me, eu olhei-a e creio que foi amor à primeira vista, pelo menos da minha parte nunca mais esqueci aquela que me enfeitiçou pra sempre. Nisto e num saracotear e manso rastejo, ela mirou-me longamente, despediu-se tristonha e com uma lágrima ao canto do olho, que bem na vi, saída daqueles formosos olhos azuis, mostrou-se-me tal como viera ao Mundo e lá foi suavemente atravessando para o outro lado.

Garanto-vos que eram pr'ái 5 ou 6 metros de belíssima cobra. Relembrei-a noutro dia em que e sem querer pisei, indo no jeep, uma qu'até me fez saltar para o chão com o dito em movimento, julgando eu estar a ser submetido a qualquer vil tiroteio ou ter atropelado alguma minazita mal intencionada, pois que o rebentamento fora idêntico. Entretanto lá longe, começava-se a ouvir o roncar das viaturas o que significava que desta vez conseguíramos o objectivo. Então o Cmdt do pelotão que levava o rádio, mas nem usá-lo sabia, tentou o contacto: "Alô, alô...aqui eu...diga se me escuta... ôvo".

Trocou os verbos, pronunciou mal os tempos, mas foi útil para uma saudável risota de descontracção e a ordem veio para abandonarmos o local e recolher ao K3. Como na ida, regressámos "todos ao molho e fé em Deus" e em alegre cavaqueira com a patrulha pedonal, que andara a fiscalizar no vai-vem costumado e constante. Missão cumprida portanto, tomámos o petit-dejeuner que para quem não sabe quer dizer " o café da manhã". Foi-nos dado o resto do dia para descansarmos, o que calhou mesmo bem para pôr a escrita em dia: Saudades PAI, Saudades MÃE. BEIJINHOS E ABRAÇOS PARA TODOS OS RESTANTES FAMILIARES.
(PS: de vez em quando sinto esta necessidade de vos mostrar que também sou culto e daí aquelas duas palavritas em inglês).

Naquela tarde, fui empossado num novo cargo sem remuneração, para quando estivesse com algum tempo disponível, ou seja, "começas amanhã". Chamado havia sido ao resort dos Senhores Oficiais e como era o dia dos meus anos, pensei que me preparavam uma festinha comemorativa e que triste fiquei porque afinal nenhum se havia lembrado do facto, ao contrário dos meus amigos da Secção de Morteiros 60, com quem partilhei o figadal almoço, tendo ainda estado presentes mais alguns camaradas disponíveis. Impunham-me sim, mais sub-humanas tarefas, mas compreendi, após os factos explanados, que de facto não haveria mais ninguém com as superiores e sábias condições para o fazer. E assim, fui incumbido pelo Sr. Capitão Cmdt da Companhia, de ser o desenhador-arquitecto-engenheiro, para construir as instalações onde acabaram por ser o restaurante do K3 e anexos, ou melhor dizendo, a cozinha e refeitório.

Que seja... se tem de ser... vamos nessa... amo desafios propostos à minha sobre dotada inteligência. E porquê eu? devido ao facto de saber o que era um tijolo? o cimento? a areia e até as pedras? (mas com essas não poderia contar porque ali em Saliquinhedim não havia uma sequer que fosse). Dispus-me e elaborei um majestoso plano qu'até me admirou a mim próprio. Para numa mais eficiente, rápida e assaz sei lá o quê, ousei suplantar as técnicas em vigor, decidindo começar pelo telhado em vez de pelas paredes que o aguentariam e dado que se aproximava a época das chuvas, estaríamos pelo menos abrigados.
Mas então... disse o arquitecto vaidoso: É pá, começa pelos caboucos e pranta lá os alicerces. 

Pensei... pensei... pensei, o que me fez uma bruta dor de cabeça e vendo que até era capaz de resultar, pus mãos à obra. Criei então, uma equipe de malta que não pudesse discutir as minhas ideias, ou seja... aboli à partida todos aqueles que percebessem da arte de pedreiro, pois gosto pouco de ser criticado e sabia que qualquer obra prima, mesmo bela e útil, tem sempre detractores. A coisa lá se foi fazendo, fio de prumo também não tínhamos, íamos resolvendo a olho nu, e por isso é que as paredes do edifício surgiram sem simetria, qu'é assim como dizer, que deveriam estar direitas de baixo para cima e nunca ao contrário. Ficaram mais ou menos, mas sólidas... Depois disso, deram-me então razão na questão do telhado só que e porque deveria ser instalado lá no alto, estava ali uma carga extra de trabalhos, mas fez-se com cibes.

Mandei também fazer duas portas, uma para a entrada e outra para a saída e vice versa e mais quatro janelas, duas maiores viradas para a mata para fazer ciúmes aos inimigos e as outras duas não. In's que sabíamos nos estariam a bispar cheios de fome, coitados. Numa dessas, a 1ª a seguir à porta de saída, desenhei-a propositadamente a fim de despejar todos os despojos sobrantes, que alimentariam os abutres.
E assim se completou a obra.
(continua)


Veríssimo Ferreira (2015)



Publicado por
Manuel Resende (Ferreira)



27 de dezembro de 2015

Post Nº 56 - Textos de Veríssimo (7)

Veríssimo Luz Ferreira
Furr. Mil. da CCAÇ 1422 - Pelundo














OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

(continuação)
E VAI DAÍ:
(passagem por Jolmete)

Até que certo dia m'aparece o meu Cmdt de Companhia (Sr. Capitão Dinis Côrte-Real)... mais o Alferes Simões, o 2º Sargento do quadro Nuno e dois Fur's-Mil, Gualter e Higino e é-me dada a ordem: Vem daí connosco que também foste convidado para os festejos em Jolmete. Fui... nem discuti, mas sem saber da importância de tal decisão. É que graças a mim foi repudiado o 1º ataque ao aquartelamento (ao que julgo saber). Chegámos... o cheiro a comes era mais qu'a muito e noite quase a chegar. E quando nos dispunha-mos a papar: Começou a fogaracha inimiga e lá se foi o objectivo em causa ou sejam: as fracas assadinhas na brasa, temperadas que foram com jindungo... Os borreguitos... Os porquinhos... 

Recapitulemos: "Pela 1ª vez, o quartel é atacado..." 
Organizei-me, procurei a arma adequada para responder a tal situação e lá descobri o meu caro morteiro 60 e um cunhete com 6 poderosas granadas. Fiz o reconhecimento da zona para onde as enviaria acompanhadas que seriam com os meus cumprimentos, raiva e votos de festas felizes e aí vão elas, uma de cada vez claro. Não deviam ter conhecimento da letalidade da coisa... acabaram com a flagelação... e ouviram-se gritos de foge... foge. Em boa verdade, até eu fiquei deslumbrado com tanta luz. É que as granadas atrás citadas, em vez de explosivas, saíram iluminantes, mas que os fez tremer e "cavar", lá isso fez. Ainda hoje não devem ter percebido, porque foi que a negra noite, se transformou num ápice, em luminoso dia.

Tínhamos um ligeiro ferido nas nossa hostes, que apanhara de raspão, com uma bala no... na anca, o que lhe causava algumas dores. Não havendo enfermeiro, fiz disso, e após informação conseguida pelo ANGRC9 administrei-lhe uma injecção de morfina. Daí que cinco minutos depois, o Fur. Mil. Indy (assim se chamava) quis iniciar uma perseguição na mata, para se vingar; o guarda-costas do Capitão Corte-Real, "guardava-o" pondo-lhe à frente uma mesa de madeira porque nada mais por ali havia para o fazer. Eu? Assei uns "xóriços", bebi uns tintos em copo de alumínio e por aí me fiquei qu'o Vat 69 fora atingido e vertera no chão vermelho. 
Saímos dali logo que amanheceu, picámos a estrada, levei as minhas tralhas do Pelundo, reagrupámo-nos e lá partimos finalmente, para tomar posse do K3, que já estava quase concluído se é que podemos dizer "concluído", ao facto de os abrigos, estarem prontos pelos quatro cantos e onde coube a minha CCAÇ 1422, "oficiais e tudo".

Coluna organizada e à frente, a Daimler (piolho lhe chamavam), uma auto-metralhadora semi-blindada, que foi disparando para a mata, durante a viagem e mais propriamente junto aos locais onde já antes houveram existido emboscadas ou flagelações. Tinha no exterior um morteiro 60 e um banco acoplados pela rapaziada engenhosa das "mecânicas auto" e logicamente que era ali necessária, quando em viagem, a permanência dum elemento que soubesse trabalhar com o referido morteiro. Encomendaram-me a missão e já que ali teria de ir, sentado em poltrona d'aço verde, pelo menos seria o pioneiro de duas coisas: 1ª - ou a enfrentar o inimigo e levar um balázio nas trombas; 2ª - ou no destino, receber as honras de primeiro a chegar.

Subi para o poiso. Passados que foram dois ou três Kms, começou-se-me a vir à memória a minha santa terrinha e o Conjunto musical "Sôr-Ritmo", pois então. (Tinham lá um vocalista fora de série, um tal de Veríssimo Ferreira, que encantava e deliciava as jovens d'então e também as suas próprias respectivas mães. E vai daí... atento venerador e obrigado a ir ali exposto e sem defesa possível, e talvez até devido ao Vallium 69, qu'antes emborcara, começou a trautear, uma coladera que aprendera a dançar há dias, no Pelundo, só que às tantas, entusiasmou-se, e lá foi em alta voz a "Nha Bolanha". Avisado foi ao que soube mais tarde, para se calar, mas com aquela barulheira de tantas viaturas, nada ouviu e continuou).

Chegámos sem problemas, caso único e nunca mais repetido, mas ficou-me sempre a mágoa do não saber porquê de não nos honrarem com qualquer ataque, ou ao menos ter sido accionada uma mina nem que pessoal fosse. E fui observar o hotel. O abrigo que me fora destinada estava nos conformes. Descíamos quatro degraus, depois mais cinco para a esquerda e ali estava a suite. Embora na época das chuvas, o chão ladrilhado de terra encarniçada, tinha já dez ou mais centímetros d'água, o que era porreiro mesmo e propício à propagação da matacanha, bichinho comichoso , como sabem. Os locais para dormir eram dez, dispostos em cinco grupos de beliches. Fizeram-se as escolhas e a mim tocou-me o último em cima, mas com visibilidade para a seteira do abrigo o que era óptimo pois que assim até poderia reagir, deitado. Ali mesmo ao lado, em baixo, ficavam as valas que nos levavam de gatas, ao local donde dispararíamos as armas pesadas, se atacados. Visitei o bar... ai nanas... jantei duas sandes de pão com pão, levei mais dez e também sagres de seis dcl para os meus. Enquanto petiscávamos chegaram as boas-vindas inimigas e tal como chegaram partiram, após, claro, termos correspondido.

Iniciámos então a pacificação da zona emboscando; patrulhando; escoltando; vigiando; descansando. Pela matina o "barman" preparava um “petit dejeuner” daqueles de se lhe tirar o bivaque e que consistia em bocadinhos de pão, ainda não em pedra mas quase, a que juntava ovos inteiros, sem casca, claro, mais umas sagres pretas e açúcar. Tudo misturado era um acepipe que deslizava suave e gulosamente pelos nossos sequiosos gorgomilos. Até ao almoço, ficávamos "porreiros mesmo pá". Este (o almoço) era óptimo e variado quanto baste: às 2ªs, 4ªs e 6ªs: dobrada liofilizada com feijão branco; às 3ªs, 5ªs, Sab e Dom: feijão branco com dobrada liofilizada. De quando em vez, porém, comíamos uns bifitos de vaca tuberculosa, que comprávamos, sem falar com os donos, por ali nos matos próximos, mas raramente, pois que o perigo também lá morava. A maior carência tinha que ver com o ingerir "frescos", nome que davam aos produtos hortícolas. Raramente chegavam lá ao fim da linha, já que antes passavam por vários "esfomeados", distribuídos desde Bissau, até nós.

Compensávamos tal falta, em Farim e aquando do aprovisionamento diário da água para uso da Companhia, abastecendo-nos então com os necessários colesteróis substitutos com vantagens das vitaminas e proteínas. Por fim e com a barriguita quase aconchegada e já do lado de lá do rio, atirávamos (DE PÉ) uma granada (DE MÃO), a fim de afugentar algum empecilhoso crocodilo dundee, que por ali andasse e tomávamos uma banhoca, coisa recomendável e saudável, dado o volume da comida... bebida. A tarde era destinada a algum descanso para que à noite pudéssemos aparecer, aos habituais encontros, com alguma compostura e pontaria afinadas, não sem que antes se houvessem limpo as maquinetas G3 e até nisso tive azar que a minha tinha mais um bocadinho para polir, pois era de bipé.

Mas nem tudo foi menos feliz e "tocaram-me" as lotarias várias vezes, como naquela em que, indo nós (a minha secção) a fazer um patrulhamento pelo circuito pedonal e até aos "carreiros" ( a 3 Km do quartel, estrada para Mansabá) local onde os mariolas costumavam "semear" minas, porque sabiam quando por ali iriam passar os reabastecimentos. Pois aconteceu, que fomos emboscados, apesar de que e como era costume, a progressão estivesse a ser feita bem e como mandam as regras. De lá, vieram uns tiritos para cá... e de cá também nada meigos fomos. É que não gostávamos mesmo... mesmo... que nos interrompessem enquanto trabalhávamos. Organizá-mo-nos depois em triângulo isósceles... avançámos selva dentro, e estávamos-lhes com uma sede !!!. Ficaram cientes que contra nós dez, a coisa chiava mais fino. 

A certa altura porém, caíram-me umas folhas de embondeiro na cabeça (um tronco passou ao lado), desmanchando-me o penteado à James Dean, com risco do lado direito e tudo. Irritei-me, tá visto, porque não gosto que me atirem coisas à cachimónia e olhei para cima. Entretanto mandei parar a festa, mas do outro lado, não me ouviram decerto e as folhas continuaram a cair. Estes gajos são recrutas, não respondam, disse. Rastejando, mato adentro lá debandaram gemendo. A minha teoria confirmou-se, pois que a cara dos "filhos duma mulher menos séria" estava desenhada no solo e enquanto isso fogueteavam para o ar, dando assim início à destruição da floresta, poiso de tanto macacóide e de alguns jagudis, ali a viver.

Operação terminada, correra bem, continuámos... Às tantas segredam-me: ali à frente, devem estar à nossa espera, vi passar uns gajos e são mais de vinte... Estudada a nova situação, pensámos como resolver o conflito iminente... avançámos com redobrados cuidados e no sentido de os envolvermos numa teia donde não saíssem. Após quase uma hora para percorrer 300 metros, portanto tal aproximação estava a ser enquadrada como nas mais vitoriosas tácticas militares, antes usadas, eis senão quando, estabeleço finalmente contacto visual e SIM eram realmente mais de vinte. Para combatentes experimentados conhecedores do terreno, a coisa estava destinada a ser "canja", e dali não sairiam impunes. Último olhar que a neblina dissipava-se e vi que: ESTAVAM DESARMADOS. E porra... ERAM GORILAS. Daqueles bem grandes. Também me viram... continuaram a comer... E nós? Retirámos tristes pelo falhanço do que esperávamos ter sido "manga de chocolate", mas com o sentimento do dever cumprido.

Naquele dia e a emboscar mais uma vez no local "carreiros", ouviu-se um zurrar. Aqui nesta zona do K3, nunca tal houvera visto, embora conhecesse, um ou outro, mas de duas patas. Acomodá-mo-nos melhor, uns atrás das baga-bagas, outros atrás das vetustas árvores, outros ainda deitados na camuflagem natural da selva. O dedo permanecia no pinchavelho, ou seja, naquela coisa que na G3 faz accionar a saída pelo cano, duma pecita que ao encontrar algo, derruba que se farta. Pedi que ao verem o asno, o deixassem para mim, experimentado que era em engatá-los na nora do meu sogro que também era o proprietário duma mula bem vistosa. 

Passado pouco tempo, lá chegaram aqueles por quem amigavelmente esperáramos para uma aterradora surpresazinha e para lhes cantar também os parabéns. Vinham descontraídos... conversando... alegres e bem dispostos... não antevendo, ingénuos, que também sabíamos preparar recepções. A tiracolo traziam, a meu ver e depois confirmei, armas proibidas e para as quais não tinham a necessária e indispensável licença para uso e porte. No final da fila em pirilau, que o caminho era estreito, lá vinha o jumento, que tanta alegria me viria a dar mais tarde.

Tadinho... vinha carregado que "nem um burro", trazendo num dos lados do lombo... espingardões e do outro lado um canhão sem recuo. Tudo, sem sela nem canga. Imaginei o sofrimento do pobre e pensei: quais selvagens, tratam assim as bestas ??? Hora da festa... faça-se a festa... e fez-se. Manga de ronco... mesmo... e só tarde se aperceberam do que lhes estava a acontecer. Regressámos depois a penates e de livre vontade, acompanhou-nos com arreata o prisioneiro que ia entrementes fazendo uma alarvice de zurraria do caraças... Interrogado foi mas nada confessou.
(continua)




Veríssimo Ferreira (2015)




Pulicado por
Manuel Resende (Ferreira)



23 de dezembro de 2015

Post Nº 54 - Textos de Veríssimo (6)

Veríssimo Luz Ferreira
Fur. Mil. da CCAÇ 1422 - Pelundo














OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

(Continuação)
E VAI DAÍ:
24 de Agosto de 1965. Cheguei enfim, levado pelo Niassa. Após um enjoo contínuo desde Lisboa, ali estava Bissau. Levantei-me do leito, onde sempre viera, excepto às horas dos comes que se bebiam e fui para a amurada e pelo que vi, pareceu-me bonito... com cheiros diferentes... o povo visível parecia simpático... a temperatura ao meu gosto e aquela chuva quente, até me refrescou as ideias. Tudo preparado para sair, qu'a terra firme estava já ali a cem metros, e eis senão quando me avisam: É pá andam lá em baixo à tua procura. Fui ver. Num "zebro" gritavam pelo meu nome. Acenei, ficou a aguardar junto ao portaló. Era "APENAS" o FUZILEIRO ESPECIAL Sebastião, das Barreiras, lá na minha terra. Sabendo da minha chegada, fez questão de me ir abraçar, convidou-me para o almoço que já mandara preparar e lá fomos depois do acantonamento da minha Companhia, ali mesmo no Forte da Amura.

Mais tarde, voluntariou-se para operações onde soubesse que eventualmente eu também poderia estar o que por duas vezes aconteceu. Voltávamos assim a trocar amplexos verdadeiros como próprio de quem se estima. Era um rapazão formidável, valente militar já com a maior distinção possível, na guerra de Angola e ali recebeu a 2ª igual condecoração. Depois... um ou outro pelotão lá foi sendo destacado para aqui e para ali e o meu (o 1º) foi-se passeando e com a prestimosa ajuda dos guias turísticos (CART. "ÁGUIAS NEGRAS") por Mansabá, Bissorã, Manhau, Pelundo (apenas a minha Secção), Jolmete e por fim reunimo-nos de novo (a CCAÇ 1422) em data que não posso precisar, mas julgo que nos finais de 1965. Mas em Bissau e porque ali permaneci oito dias, acabei por e em companhia doutro amigo (FURRIEL MILICIANO HIGINO ARROZEIRO) conhecer a cidade e todas as malandrices que escondia. Nada me parecia ser perigoso e inquiria-me mesmo se haveria guerra, apesar do tiroteio que lá longe se ouvia.

No aeroporto vi os T6, que partiam com bombas agarradas e chegavam sem elas... vi a chegada dos aviões a hélice com o regresso de férias dos militares, conheci um ou outro civil residente, notei que mulheres brancas Portuguesas haviam poucas e miradas como se duma espécie rara fossem. Impressionava-me ter de dormir com mosquiteiro, ínútil que a bicharada entrava mesmo, embora em mim picassem só que morriam de seguida ao absorverem o meu venenoso sangue azul de "Marquês da Pedreira", que fora e que um dia conto como lá cheguei, à nobreza entenda-se. Pedreira, no rio Sôr, aonde ia pescar barbos de meio quilo... e menos.

Dizia-se que só debaixo de fogo aprenderíamos o que era dar valor à porca da vida. Agora aqui perto de Mansabá para onde me dirigia, convidado que fui, para ir tomar conta dos pertences militares usados por uma Companhia, que iria regressar a casa. Foi junto a umas ruínas ainda fumegantes do que tinha sido uma serração, que o IN nos presenteou com uma emboscada de todo o tamanho. Havia antes destruído também a ponte que atravessava um riacho não muito caudaloso, mas que nos obrigou depois a colocar cibes e tábuas, para que a coluna de veículos pudesse atravessar.


Ajudados fomos pelos "Águias Negras", que nos vieram socorrer em menos tempo do que leva a contar e após terem ouvido os primeiros tiros...
Nada de grave aconteceu, ripostámos e ninguém se magoou.
Chegados ao aquartelamento fomos recebidos que nem heróis, pelos restantes que ali haviam ficado contrariados e diziam estes "velhinhos" últimos de farda amarela (e eles sim com feitos dignos de registo), que nos houvéramos portado muito bem.
Apareceu-me um camarada d'armas, amigo já antes e lá da minha terra, o "Manel de Mora" e nem sei se vos diga se vos conte, a tamanha alegria que foi.
Depois vieram as suas recomendações, os avisos, as indicações úteis e a informação dos locais perigosos. tudo isto enquanto jantávamos que até nisso, nos recepcionaram melhor que bem.
No dia seguinte dei início à tarefa de que fora incumbido e lá vieram as contagens de viaturas, a observação dos edifícios, a comida que ficava e também a bebida claro, mas o que me deu mais gozo ver em pormenor, foram os dois obuses enormes com grandes rodas e que ao que me foi dito estavam apontados para Morés, onde já tinham feito enormes estragos nos poilões que circundava aquela base, pois que, ao que se sabia, as bojardas eram de muito difícil penetração onde se pretendia que fossem.

Era fácil mudá-los para outras posições e na verdade recordo que depois um dia até nos ajudaram no K3, quando as bestas quadradas ali nos visitaram com alguma pretensa agressividade.
Quis saber se na verdade trabalhavam e prometeram-me mostrar que sim.
A demonstração chegou logo quase de imediato, quando nessa mesma noite nos atacaram. Repelidos foram e a seguir fomos desopilar para o bar e... que bem aprovisionado estava !!! Ele havia de tudo desde Vat 69, águas de Lisboa (tintos e brancos), Perrier e Tónica, Gin's.... enfim... uma quantidade generosa de boas coisas. E foi nessa noite, que comecei a tomar mais assiduamente, aquele especial remédio feito à base de lúpulo, cevada, milho e centeio. Comecei e hoje passados 50 anos, ainda não acabei.

Ao fim de 3 ou 4 dias e já com os bens mudados para o nome dos novos donos (a minha CCAÇ 1422) e tivéssemos tomado também, posse das suites e instalações, veio a ordem de que afinal não íríamos ficar por ali, mas sim trocar com a CCAÇ 1421, que tanto estava empenhada em construir e de raiz, um hotel subterrâneo de cinco ou mais estrelas, em Saliquinhedim, K3 BISSORÃ. Três ou 4 dias depois, convidam o meu pelotão a visitar Bissorã estivemos debaixo de intenso fogo, pr'aí mais d'uma hora e sem sabermos bem como dar a volta à critiquérrima situação. Dum lado o IN e do outro o rio, que atravessáramos quase seco mas que aliado à maré, subira... subira... e a raivosa corrente parecia até querer morder.

Não havendo melhor hipótese, porque os emboscadores eram bem mais do que deviam ser, decidiu o Senhor Oficial, distinto cmdt da força em presença, cavar dali em passo de corrida e tácticamente em retirada estratégica, forçando a que investíssemos contra o impetuoso aguaçal. Um amigo Fur.Mil do meu pelotão, indigitado e treinado para chefiar a Secção de metralhadoras Dreyse, que não tínhamos, pede-me ajuda para atravessar, porque não sabia nadar. Peguei na coronha da sua G3 e aconselhei-o a que pegasse no cano e lá fomos. Quase a salvo, escorregou e foi uma carga de trabalhos para lhe deitar a mão, mas lá o coloquei em lugar seguro. Fosse dos nervos... ou do que fosse, sussurrou-me então o Raul Durão: Já sei nadar... aprendi hoje pá. Fora o seu primeiro baptismo debaixo de fogo e d'água, tal como acontecera com alguns de nós, mas para ele não houveram repetições devido a ter sido requisitado para a locução da Rádio em Bissau.

Prenunciando desgraças, andavam por ali na margem, dezenas de abutres, que como sabem se trata duma espécie de pardal de telhado mas muito maior e a quem chamam jagudis, passarões proibidos de apanhar (o que só soube depois de já ter aparafusado o pescoço a um), dada a profiláctica actividade que desenvolvem na limpeza de tudo o que é carne e não mexe. No solo deslocam-se aos saltinhos e foi muito triste para mim não os poder caçar, dada que esta gulodice alimentar (passarinhos fritos) era e continua a ser, uma das minhas dietas preferidas.
Bom, acabada a refega, regressámos de novo a Mansabá. Lá chegados mandam-nos avançar para Manhau. Ali conheci ao vivo, a dor... o ódio. Mina assassina vitimou um amigo, o FUR. MIL. FEIJÃO. Hoje quando leio os que lançam lérias elogiosas ao terrorista "paigc" fico pi-urso e decerto que não se lembram que ele foi o causador de tantas desgraças que aconteceram. Julgo, que pensariam como eu se tivessem estado presentes quando os infortúnios aconteceram... se tivessem que andar a limpar sangue... a juntar pedaços... a chorar amigos...

PELUNDO 
Surgida que foi, a absoluta necessidade da existência em permanência, dum experimentado atirador enólogo de Infantaria com G3, e também especialista em morteiros 60, sou então destacado e apenas com a  minha Secção, para a Cooperativa do Pelundo. Instalados ficámos na Tabanca, em casa do Ti Vicente, que muito bem nos tratou, obsequiando-nos com tudo o que de melhor tinha... "ele" foram galinhas... fracas... mé-més... porcos... vacas e nem sequer nos faltaram os... líquidos com ou sem álcool... com ou sem gás. Ali conheci as famosas lavadeiras, que tudo lavavam por 30 pesos, se lhes dispensássemos o quinino das 5ªs feiras. Eram jovens bonitas, que respeitei feito parvo e que me respeitaram infelizmente. Mas eu seria lá capaz de trair a minha Caderneta Militar? qu'a páginas 14 e 15 diz isto: "Nos termos do artigo 187 do R.D.M." PRIMEIRA CLASSE DE COMPORTAMENTO, (quando leio, até me comovo... pois que sou muita sensível).

O Pelundo era zona ainda sem guerrilhas nessa época e daí que pudéssemos passear até Teixeira Pinto e de quando em vez mesmo até Bula, com o jeep colocado à minha disposição. Ainda hoje reflito: Porque será que não me comeram vivo? Seria porque estávamos protegidos pelo "homem grande" em casa de quem aquartelávamos? Seria que a nossa missão de lhe guardar o cofre e o recheio, movimentou influências? Ou seria que tinham mesmo medo de nós? Intrigante e de tal forma, que ainda hoje passados "apenas" 50 anos, não encontro respostas.
(continua)


Veríssimo Ferreira (2015)


Publicado por
Manuel Resende (Ferreira)