23 de dezembro de 2015

Post Nº 54 - Textos de Veríssimo (6)

Veríssimo Luz Ferreira
Fur. Mil. da CCAÇ 1422 - Pelundo














OS MELHORES 40 MESES DA MINHA VIDA

(Continuação)
E VAI DAÍ:
24 de Agosto de 1965. Cheguei enfim, levado pelo Niassa. Após um enjoo contínuo desde Lisboa, ali estava Bissau. Levantei-me do leito, onde sempre viera, excepto às horas dos comes que se bebiam e fui para a amurada e pelo que vi, pareceu-me bonito... com cheiros diferentes... o povo visível parecia simpático... a temperatura ao meu gosto e aquela chuva quente, até me refrescou as ideias. Tudo preparado para sair, qu'a terra firme estava já ali a cem metros, e eis senão quando me avisam: É pá andam lá em baixo à tua procura. Fui ver. Num "zebro" gritavam pelo meu nome. Acenei, ficou a aguardar junto ao portaló. Era "APENAS" o FUZILEIRO ESPECIAL Sebastião, das Barreiras, lá na minha terra. Sabendo da minha chegada, fez questão de me ir abraçar, convidou-me para o almoço que já mandara preparar e lá fomos depois do acantonamento da minha Companhia, ali mesmo no Forte da Amura.

Mais tarde, voluntariou-se para operações onde soubesse que eventualmente eu também poderia estar o que por duas vezes aconteceu. Voltávamos assim a trocar amplexos verdadeiros como próprio de quem se estima. Era um rapazão formidável, valente militar já com a maior distinção possível, na guerra de Angola e ali recebeu a 2ª igual condecoração. Depois... um ou outro pelotão lá foi sendo destacado para aqui e para ali e o meu (o 1º) foi-se passeando e com a prestimosa ajuda dos guias turísticos (CART. "ÁGUIAS NEGRAS") por Mansabá, Bissorã, Manhau, Pelundo (apenas a minha Secção), Jolmete e por fim reunimo-nos de novo (a CCAÇ 1422) em data que não posso precisar, mas julgo que nos finais de 1965. Mas em Bissau e porque ali permaneci oito dias, acabei por e em companhia doutro amigo (FURRIEL MILICIANO HIGINO ARROZEIRO) conhecer a cidade e todas as malandrices que escondia. Nada me parecia ser perigoso e inquiria-me mesmo se haveria guerra, apesar do tiroteio que lá longe se ouvia.

No aeroporto vi os T6, que partiam com bombas agarradas e chegavam sem elas... vi a chegada dos aviões a hélice com o regresso de férias dos militares, conheci um ou outro civil residente, notei que mulheres brancas Portuguesas haviam poucas e miradas como se duma espécie rara fossem. Impressionava-me ter de dormir com mosquiteiro, ínútil que a bicharada entrava mesmo, embora em mim picassem só que morriam de seguida ao absorverem o meu venenoso sangue azul de "Marquês da Pedreira", que fora e que um dia conto como lá cheguei, à nobreza entenda-se. Pedreira, no rio Sôr, aonde ia pescar barbos de meio quilo... e menos.

Dizia-se que só debaixo de fogo aprenderíamos o que era dar valor à porca da vida. Agora aqui perto de Mansabá para onde me dirigia, convidado que fui, para ir tomar conta dos pertences militares usados por uma Companhia, que iria regressar a casa. Foi junto a umas ruínas ainda fumegantes do que tinha sido uma serração, que o IN nos presenteou com uma emboscada de todo o tamanho. Havia antes destruído também a ponte que atravessava um riacho não muito caudaloso, mas que nos obrigou depois a colocar cibes e tábuas, para que a coluna de veículos pudesse atravessar.


Ajudados fomos pelos "Águias Negras", que nos vieram socorrer em menos tempo do que leva a contar e após terem ouvido os primeiros tiros...
Nada de grave aconteceu, ripostámos e ninguém se magoou.
Chegados ao aquartelamento fomos recebidos que nem heróis, pelos restantes que ali haviam ficado contrariados e diziam estes "velhinhos" últimos de farda amarela (e eles sim com feitos dignos de registo), que nos houvéramos portado muito bem.
Apareceu-me um camarada d'armas, amigo já antes e lá da minha terra, o "Manel de Mora" e nem sei se vos diga se vos conte, a tamanha alegria que foi.
Depois vieram as suas recomendações, os avisos, as indicações úteis e a informação dos locais perigosos. tudo isto enquanto jantávamos que até nisso, nos recepcionaram melhor que bem.
No dia seguinte dei início à tarefa de que fora incumbido e lá vieram as contagens de viaturas, a observação dos edifícios, a comida que ficava e também a bebida claro, mas o que me deu mais gozo ver em pormenor, foram os dois obuses enormes com grandes rodas e que ao que me foi dito estavam apontados para Morés, onde já tinham feito enormes estragos nos poilões que circundava aquela base, pois que, ao que se sabia, as bojardas eram de muito difícil penetração onde se pretendia que fossem.

Era fácil mudá-los para outras posições e na verdade recordo que depois um dia até nos ajudaram no K3, quando as bestas quadradas ali nos visitaram com alguma pretensa agressividade.
Quis saber se na verdade trabalhavam e prometeram-me mostrar que sim.
A demonstração chegou logo quase de imediato, quando nessa mesma noite nos atacaram. Repelidos foram e a seguir fomos desopilar para o bar e... que bem aprovisionado estava !!! Ele havia de tudo desde Vat 69, águas de Lisboa (tintos e brancos), Perrier e Tónica, Gin's.... enfim... uma quantidade generosa de boas coisas. E foi nessa noite, que comecei a tomar mais assiduamente, aquele especial remédio feito à base de lúpulo, cevada, milho e centeio. Comecei e hoje passados 50 anos, ainda não acabei.

Ao fim de 3 ou 4 dias e já com os bens mudados para o nome dos novos donos (a minha CCAÇ 1422) e tivéssemos tomado também, posse das suites e instalações, veio a ordem de que afinal não íríamos ficar por ali, mas sim trocar com a CCAÇ 1421, que tanto estava empenhada em construir e de raiz, um hotel subterrâneo de cinco ou mais estrelas, em Saliquinhedim, K3 BISSORÃ. Três ou 4 dias depois, convidam o meu pelotão a visitar Bissorã estivemos debaixo de intenso fogo, pr'aí mais d'uma hora e sem sabermos bem como dar a volta à critiquérrima situação. Dum lado o IN e do outro o rio, que atravessáramos quase seco mas que aliado à maré, subira... subira... e a raivosa corrente parecia até querer morder.

Não havendo melhor hipótese, porque os emboscadores eram bem mais do que deviam ser, decidiu o Senhor Oficial, distinto cmdt da força em presença, cavar dali em passo de corrida e tácticamente em retirada estratégica, forçando a que investíssemos contra o impetuoso aguaçal. Um amigo Fur.Mil do meu pelotão, indigitado e treinado para chefiar a Secção de metralhadoras Dreyse, que não tínhamos, pede-me ajuda para atravessar, porque não sabia nadar. Peguei na coronha da sua G3 e aconselhei-o a que pegasse no cano e lá fomos. Quase a salvo, escorregou e foi uma carga de trabalhos para lhe deitar a mão, mas lá o coloquei em lugar seguro. Fosse dos nervos... ou do que fosse, sussurrou-me então o Raul Durão: Já sei nadar... aprendi hoje pá. Fora o seu primeiro baptismo debaixo de fogo e d'água, tal como acontecera com alguns de nós, mas para ele não houveram repetições devido a ter sido requisitado para a locução da Rádio em Bissau.

Prenunciando desgraças, andavam por ali na margem, dezenas de abutres, que como sabem se trata duma espécie de pardal de telhado mas muito maior e a quem chamam jagudis, passarões proibidos de apanhar (o que só soube depois de já ter aparafusado o pescoço a um), dada a profiláctica actividade que desenvolvem na limpeza de tudo o que é carne e não mexe. No solo deslocam-se aos saltinhos e foi muito triste para mim não os poder caçar, dada que esta gulodice alimentar (passarinhos fritos) era e continua a ser, uma das minhas dietas preferidas.
Bom, acabada a refega, regressámos de novo a Mansabá. Lá chegados mandam-nos avançar para Manhau. Ali conheci ao vivo, a dor... o ódio. Mina assassina vitimou um amigo, o FUR. MIL. FEIJÃO. Hoje quando leio os que lançam lérias elogiosas ao terrorista "paigc" fico pi-urso e decerto que não se lembram que ele foi o causador de tantas desgraças que aconteceram. Julgo, que pensariam como eu se tivessem estado presentes quando os infortúnios aconteceram... se tivessem que andar a limpar sangue... a juntar pedaços... a chorar amigos...

PELUNDO 
Surgida que foi, a absoluta necessidade da existência em permanência, dum experimentado atirador enólogo de Infantaria com G3, e também especialista em morteiros 60, sou então destacado e apenas com a  minha Secção, para a Cooperativa do Pelundo. Instalados ficámos na Tabanca, em casa do Ti Vicente, que muito bem nos tratou, obsequiando-nos com tudo o que de melhor tinha... "ele" foram galinhas... fracas... mé-més... porcos... vacas e nem sequer nos faltaram os... líquidos com ou sem álcool... com ou sem gás. Ali conheci as famosas lavadeiras, que tudo lavavam por 30 pesos, se lhes dispensássemos o quinino das 5ªs feiras. Eram jovens bonitas, que respeitei feito parvo e que me respeitaram infelizmente. Mas eu seria lá capaz de trair a minha Caderneta Militar? qu'a páginas 14 e 15 diz isto: "Nos termos do artigo 187 do R.D.M." PRIMEIRA CLASSE DE COMPORTAMENTO, (quando leio, até me comovo... pois que sou muita sensível).

O Pelundo era zona ainda sem guerrilhas nessa época e daí que pudéssemos passear até Teixeira Pinto e de quando em vez mesmo até Bula, com o jeep colocado à minha disposição. Ainda hoje reflito: Porque será que não me comeram vivo? Seria porque estávamos protegidos pelo "homem grande" em casa de quem aquartelávamos? Seria que a nossa missão de lhe guardar o cofre e o recheio, movimentou influências? Ou seria que tinham mesmo medo de nós? Intrigante e de tal forma, que ainda hoje passados "apenas" 50 anos, não encontro respostas.
(continua)


Veríssimo Ferreira (2015)


Publicado por
Manuel Resende (Ferreira)



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